quarta-feira, julho 18

'ABUTRES'...


‘Carancho’, película argentina com direção de Pablo Trapero, esteve em cartaz no Brasil sob o título ‘Abutres’. Alguns amigos meus, de cultura incontestável, não gostaram do filme. Aí, talvez, por questões muito pessoais, ou profissionais, enfim...

Fato é que Carancho é inegavelmente impactante! E seguramente o melhor filme argentino depois de ‘El Secreto de sus Ojos’. Um exemplo essencial de obra artística vigorosa, com alcance para muito além do mero momento conversa-pipoca. Nada contra entretenimento. Mas, nem só de Homem Aranha viverá o homem.

Estamos falando de um filme cuja denuncia foi tão forte ao abordar um delicado dilema da sociedade argentina, que moveu o Parlamento Nacional daquele país a empreender intensos debates no sentido de promover uma reforma significativa no tocante à legislação de Seguros para acidentes automobilísticos.

Na tela, com o auxílio de um roteiro competentíssimo, o eletrizante drama urbano intriga o espectador ao situá-lo como privilegiado testemunha ocular das entranhas da máfia, que na vida real, fatura milhões de dólares explorando práticas ilegais em torno de trágicas histórias de vidas ligadas a seguros de acidentes.

Sosa (Ricardo Darín) é um advogado que teve sua licença cassada e, por consequência de sua decadência profissional, vê-se envolvido com um inescrupuloso escritório de advocacia, cujo nicho de atuação é se aproveitar da frágil situação de vítimas de acidentes, oferecendo-lhes a formidável possibilidade de conseguir grandes indenizações.

Sosa é um ‘abutre’, que juntamente com outros companheiros - informantes em hospitais, policiais, agentes funerários e toda espécie de funcionários públicos -, formam uma perniciosa organização criminosa que, praticamente invisível na pesada rotina das grandes cidades, enriquecem através das dores de milhares de vulneráveis.

Certo dia, numa das ocorrências no trânsito, ele conhece a paramédica Luján (a linda talentosíssima atriz Martina Gusman). Aí tem início um envolvimento amoroso que culminará num profundo dilema moral.

Impressiona o entrosamento de Martina e Ricardo.

Importante, também, é observar que a problemática realidade retratada nesse filme, guarda espantosa semelhança com determinadas práticas ilícitas existentes no Brasil.

H. L. C.

segunda-feira, julho 16

OS AMORES DE SOLEDAD VILLAMIL




A simbiose perfeita resultante da primeira parceria dramática dos atores Soledad Villamil e Ricardo Darín: Assim é o belíssimo ‘El mismo amor, la misma lluvia’. 


De 1999, dirigido por Juan José Campanella, o filme conta a intensa estória de amor vivida por Laura Ramallo e Jorge Pellegrini.  Entre encontros e desencontros o casal cultiva um romance que ultrapassa as barreiras de quase duas décadas.

Trata-se de uma película sobre a vida de pessoas comuns. Sobre o eterno embate surgido quando duas pessoas decidem formar um casal. O choque das individualidades; o medo de se anular; o pavor da acomodação. A necessidade quase claustrofóbica de, em certo momento, desligar-se do outro como a buscar o vital sopro de liberdade. Pois, o outro nos completa, nos conforta, mas também parece inexoravelmente nos aniquilar.  Mais importantes do que os amores são os projetos de vida? Assistam ao filme e tirem suas próprias conclusões.

Aqui mais uma vez o espectador é presenteado com uma aula argentina de roteiro; de construção de diálogos. A desconcertante fotografia, sempre psicológica. E aquela direção de arte sempre com um charmoso ‘tom de Astor Piazzolla’. Vemos um drama milimetricamente trabalhado; contudo, na medida certa, combinado com um memorável toque de humor.

Abençoada seja a deslumbrante Soledad Villamil!

H. L. C.

domingo, julho 15

O PRIMEIRO OSCAR ARGENTINO


‘La Historia Oficial’, é um importantíssimo filme argentino. De 1985, foi o primeiro latino-americano a sagrar-se vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro; Também é a primeira, das duas películas argentinas que conseguiram levar para casa a cobiçadíssima estatueta.

O filme do então estreante diretor Luis Puenzo, passa-se no turbulento ano de 1983, período final da ditatura experimentada por aquele país platino.

A ambientação da obra ocorre no momento onde crescem as manifestações populares por notícias dos presos políticos desaparecidos, e, principalmente, reivindicações pelo paradeiro dos filhos desses desaparecidos – que eram arrancados de seus pais; alguns, dos ventres de suas mães – que já se sabia, à época, eram convertidos pelos militares em presentes às famílias da classe média, simpatizantes do Regime.

Alicia (Norma Aleandro) e Roberto (Héctor Alterio) formam um feliz casal, que vive em Buenos Aires com Gaby, sua pequena filha. O conflito se instala quando Alicia é tomada de remorso quanto ao passado que lhe deu Gaby.

A atuação de Norma Aleandro está realmente impressionante. É, sem dúvida, um dos quatro melhores filmes argentinos de todos os tempos.


 h. l. c.

segunda-feira, julho 9

ATEMPORAL E UNIVERSAL



‘El Arreglo’, dirigido por Fernando Ayala, a primeira vista é apenas um excelente “drama suburbano”, uma espécie de imersão do espectador, principalmente o estrangeiro, no dia a dia das camadas sociais mais pobres da Argentina do início dos anos 1980.

Entretanto, em verdade, trata-se de denúncia atemporal e universal de uma pandemia que assola a humanidade desde remotas lembranças – a corrupção! O Bem Público que, volta e meia é afanado e usurpado como privado, pelos próprios agentes que deveriam ser guardiões do interesse Maior.

Trata-se de um estudo cinematográfico bastante útil e artístico, combinação atualmente cada vez mais rara em dias de arte cada vez mais supérflua. 

A fábula é brilhantemente roteirizada. Os diálogos são calibradíssimos. E o elenco está bastante afiado para contar a estória de uma família, e de um bairro inteiro, que se veem obrigados a subornar um funcionário público, que fora encarregado de comandar a realização de um projeto que levará água para a localidade.

Todos tem direito à água, pois são contribuintes do Estado, mas, só a terá aqueles que concordarem em dar "um" por fora, ao micro-corrupto. O conflito do filme é instaurado quando o pai de uma das famílias se recusa a ser mais um micro-corruptor, negando-se a  fazer parte do jogo que nutre o pernicioso sistema.

Hedre Lavnzk Couto




domingo, julho 8

A BELA PERONISTA...


Uma jovem atriz apaixona-se por um sisudo general de meia idade. Juntos, formarão o casal protagonista do maior fenômeno político da vida nacional argentina – o peronismo.

‘Juan y Eva, Amor, Ódio, Revolução’, de 2011, é um filme ousado, que guarda achados dignos de entusiasmo. A diretora Paula de Luque, sem grandes estardalhaços, nos apresenta uma pintura muito peculiar, da cada vez mais desconhecida e ficcional estória de amor vivida entre Juan Perón e Evita Duarte.

A surpresa do filme é a boa Julieta Díaz, que constrói uma Eva consistente. E Belíssima. Outros bons destaques são a fotografia e a música. O roteiro, não é o melhor elemento do filme.

Tchau!

Hedre L. Couto

sábado, julho 7

ÉPICO...


foto: divulgação

Senhoras e senhores, ‘Revolución, el Cruce de los Andes’, é a minha dica de hoje.  

Esse épico teve estreia em 2011, integrando assim os feitos comemorativos do segundo bicentenário da independência argentina.

Realização da tv pública daquele país, o longa é dirigido por Leandro Ipiña,  que oferece aos espectadores  versão da histórica façanha militar protagonizada por José de San de Martín, que, em 1817, conduzindo um exército cruzou a Cordilheira dos Andes, indo da região de Cuyo até o Chile, para lá enfrentar a coroa espanhola.

O filme interessará mais àqueles que gostam de história.

Tchau!
H. L. Couto

sexta-feira, julho 6

TRAGICOMÉDIA


Do ano de 1982, ‘Plata Dulce’, é o excelente filme argentino que indico a vocês, nesta sexta-feira, caros leitores.

Da lavra do diretor Fernando Ayala, com atuações magistrais dos grandes Frederico Luppi e Julio de Grazia, Plata Dulce é uma Tragicomédia indispensável para todos aqueles que desejam conhecer o melhor do cinema de los Hermanos e, claro, um pouco mais a respeito da história daquele país, às vezes, tão parecida com a trajetória da nossa própria realidade brasileira.

O enredo, trabalhado através de roteiro preciso, retrata a complicada crise econômica porque passou a nação argentina, quando da desenfreada realização de negócios transloucados, em decorrência de uma grande ilusão financeira, provocada pela então desvalorização do dólar.

Vejam! E até já.


Hedre Lavnzk Couto


foto: divulgação

quinta-feira, julho 5

"WESTERN ARGENTINO"



foto: www.aballay.com.ar


‘ABALLAY, EL HOMBRE SIN MIEDO’, é a dica cinematográfica desta quinta-feira.

No Oscar 2012, esse foi o representante argentino na disputa pela estatueta de melhor filme estrangeiro. Para tanto, este filme dirigido por Fernando Spiner, desbancou ‘Un Cuento Chico’, até então tido por muitos como favorito.


É uma obra curiosíssima, uma espécie de western argentino, cujo interessante resultado estético-dramático não pode deixar de ser conferido por aqueles que gostam do bom cinema.  


O filme recebeu boas críticas dentro e fora da Argentina. Mesmo assim, talvez aí por questões de distribuição e divulgação, a boa impressão artística não se converteu em sucesso de bilheteria - tal qual o acontecido com ‘El Secreto de sus Ojos’ -, Aballay, no seu primeiro mês em cartaz, foi visto por apenas 20 mil argentinos.

Infelizmente, o filme não chegou aos cinemas de Salvador.

ps.: E, sim, vou escrevendo sobre cinema porque não há peças de teatro no momento.

Hedre Lavnzk Couto

quarta-feira, julho 4

FESTIVAL DE CINEMA ARGENTINO




divulgação

Amigos, durante duas semanas, a começar de hoje, este blog indicará, diariamente, um filme argentino.

A dica desta quarta-feira é  'ESPERANDO LA CARROZA', filme de 1985. 
Dirigido por Alejandro Doria, essa é uma preciosa comédia de costumes, inspirada em peça teatral homônima, de autoria do uruguaio Jacobo Langsner.

Trata-se de uma película extremamente popular na Argentina. Daqueles filmes vistos e revistos através das diferentes gerações. O que só vem a atestar sua qualidade perene de obra de arte, sustentada por uma performance impagável de seus ótimos atores, exímios dominadores do gênero cômico.


Divirtam-se. E até já!



H. L. Couto


sexta-feira, junho 29

O TEATRO DE GARCIA LORCA, SEGUNDO PERNAMBUCO


Já nas duas noites seguintes ao feriado do 2 de julho, os soteropolitanos poderão conferir o premiado espetáculo pernambucano ‘Um Rito de Mães, Rosas e Sangue’. Salvador será o ponto de partida da turnê nacional da encenação, que surgiu como pretexto para homenagear os 75 anos de desaparecimento do dramaturgo Frederico Garcia Lorca.

‘Bodas de Sangue’, ‘A Casa de Bernarda Alba’ e ‘Yerma’, são as obras tomadas de empréstimo pelo diretor Claudio Lira, que construiu uma ousada adaptação cênica, partindo da fusão das consideradas três tragédias rurais do aclamado poeta espanhol.

Com uma proposta estética ritualística, a peça desenvolve-se ao longo de três quadros, metaforicamente ambientados em tempo e espaço distantes. “A pintura do desejo de se investigar a arrebatadora vastidão da morte”, nas palavras do próprio Lorca; tal poderá ser a impressão do espectador ao se deparar com a narrativa de 'Um Rito de Mães, Rosas e Sangue', que promete esmero em descortinar personagens num constante jogo de imposições de memórias, desejos, fantasmas, infortúnios, maldições e claustrofobia.

Num primeiro olhar, o que mais cativa no espetáculo é a plástica. O que sugere atenção especial à cenografia de Sandra Rino, à iluminação de Luciana Raposo, e o figurino de Luciano Pontes.

Os textos de Garcia Lorca são fortes, consistentes. O teatro de Pernambuco tem tradição. Tradição por fazer teatro com ‘teatralidade’, o que, em verdade, é o único tipo de teatro que ainda guarda algum sentido nos dias de hoje. Além disso, em tempos de pobreza cênica tão aguda, pode ser muito interessante ver um elenco com dez atores em cena.
fotos: Tuca Siqueira

Onde: Teatro do Movimento - UFBA
Endereço: Av Adhemar de Barros,S/N - Campus de Ondina - Salvador
Contato: danca@ufba.br Telefone: 55 (71) 3245.6412
Quando: dias 03 e 04 de julho – Terça e Quarta às 20h
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia-entrada)
Recomendação: 16 anos
Lotação: 120 Lugares


Hedre Lavnzk Couto



sexta-feira, junho 8

"VAMOS, PENELOPE, DEIXEMOS PRA LÁ ESSA DROGA DE POLITICAMENTE CORRETO!"

Roma Polanski, com o seu filme 'Deus da Carnificina', aplica um contundente soco no estomago desta verdadeira pandemia cultivada por bilhões de idiotas em todo o mundo - o politicamente correto. Se alguém já disse que, entre nós do Brasil, os imbecis perderam a timidez e agora aparecem senhores dos maiores cargos públicos ou privados, essa peça teatral de Yasmina Reza, agora na telas do cinema, é um delicioso tratado, cinematográfico, de que a inteligência ainda pode resgatar-se dos grilhões dessa nossa época dominada pelos estúpidos crônicos.

O forte do filme são os fascinantes diálogos, impecavelmente esculpidos pela atuação dos quatro atores Kate Winslet; Cristoph Waltz; Jodie Foster e john Reilly. Nestes tempos onde não se encontra teatro bom em Salvador nem pra remédio, ir ao cinema e constatar essa empolgante obra, de 80 minutos, originada de um bom texto teatral, é reconfortante.

Corram aos cinemas! E salvem-se.



quarta-feira, maio 30

‘Flores do Oriente’


Com história forte, mas delicada, entrelaçando magistralmente a capacidade contraditória de o ser humano produzir dor e beleza, crueldade e generosidade, esse filme segue a tradição oriental de nos proporcionar inesquecíveis momentos de deleite visual. Sinestesia, composta de sangue e jasmim. Deslumbrante poema cinematográfico, com destaque para os figurinos! Porém, o que mais impressiona é o desempenho do elenco. Todos os atores, sem exceção, estão intensos, verdadeiros. Seu único ponto frágil é a música. Vale a pena.

H. L. Couto

quarta-feira, maio 23

"Os Corvos"

'O Corvo', de James McTiegue, atualmente em cartaz, só tem de razoável a fotografia. Interpretação pastelônica. Diálogos sofríveis.Voltei do cinema e vi o homônimo, de 1935, com o impagável Bela Lugosi. Bem mais cinema. Vejam!

terça-feira, maio 22

Orson Welles e John Cassavetes são os dois únicos homens dos quais tenho inveja na vida:

De Welles, o perfeito Cidadão Kane não é o meu preferido. Deus sabe como gostaria de ter feito os seus assombrosos 'Othello'; e  'Macbeth'. Perto dessas duas obras de Orson, Sir Laurence mais parece uma donzela lânguida.

De Cassavetes,  o diabo bem sabe que eu, de bom grado, lhe teria vendido minha alma para ter feito 'Sombras'; 'Faces'; e 'Noite de Estréia'.

Aliás, o roteiro de Noite de Estréia, bem adaptado, poderia originar um espetáculo marcante. Cadê a coragem  dos diretores? Há vida além do puro entretenimento, senhores...

Hedre Lavnzk Couto

terça-feira, maio 8


Crítica do espetáculo ‘Homens Que Amam Demais’

Está em cartaz desde a última sexta-feira, no Teatro Gamboa Nova, a peça ‘Homens Que Amam Demais’. Dirigido por Caíca Alves, que também integra o elenco junto a Daniel Becker, o trabalho tem sido divulgado como um espetáculo musical que, se valendo da mistura de escritos filosóficos com a Canção brega das décadas de 60 e 70, pretende discutir o amor, e as relações afetivas entre homens e mulheres.

O que se verifica no palco, no entanto, é um robusto desfile de problemas estruturais, técnicos, conceituais e, sobretudo, ausência de talento artístico. Homens Que Amam Demais não foge à regra, ora em moda na Cidade do Salvador, onde os realizadores de teatro melhor escrevem a respeito, do que materializam suas obras, propriamente.  No projeto, no folder, nas entrevistas existe todo um aparato teórico, quase acadêmico – na verdade, na maioria das vezes pura cultura de almanaque – porém, quando sentamos diante das peças, elas são vergonhosamente frágeis.

Caíca Alves denomina sua encenação de ‘espetáculo musical’. Bobagem, não há nada de musical nele, está mais para karaokê de fim de festa. Nem Alves nem Becker sabem cantar (a direção de canto feita pela cantora Manuela Rodrigues não alcançou efeito positivo algum), muito menos tocar instrumentos, mesmo assim, somos obrigados a presenciar um dos atores espancar um pobre violão.  Tempos atrás, publiquei neste espaço crítica do espetáculo Thomas Toma Blues, que também se pretendia musical. Bom, se ‘Thomas’ foi um fiasco, remeto o leitor àquele texto, e assim entenderão as referências que tenho para me impacientar com ‘Homens que Amam Demais’...

Segundo Caíca, o material fonte que originou o texto da peça é composto a partir de obras de dois pensadores bastante lidos nas últimas décadas: de Roland Barthes o espetáculo teria bebido no conteúdo de ‘Fragmentos de um discurso amoroso’; e do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, teriam buscado elementos em ‘Amor Líquido – Sobre as fragilidades dos laços humanos’.

Barthes, que morreu em 1980, singelamente atropelado em uma rua de Paris, é reconhecido por ter traçado uma minuciosa crítica do vazio das atitudes sociais e cotidianas do homem moderno. Já Bauman, é um dos autores mais respeitados e devorados da atualidade, com mais de 50 livros publicados, destacado-se ainda ‘Vida Líquida’; ‘Tempos Líquidos’; ‘Modernidade Líquida’; Cartas ao Mundo Líquido Moderno’ entre outros. Em seus estudos ele aborda a obsessão pelo corpo ideal; o culto às celebridades; o endividamento geral; a paranoia com segurança; e, exaustivamente, a instabilidade nos relacionamentos amorosos. Podemos defini-lo como um pensador obsessivo pela reflexão a respeito dos vínculos humanos: “vivemos tempos líquidos. Nestes dias, tudo muda rapidamente. Nada é feito para durar, para ser sólido”.

Neste sentido, Zygmunt Bauman afirma que “Amor líquido é um amor ‘até segundo aviso’, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma ‘líquida’, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom lembrar que o amor não é um ‘objeto encontrado’, mas um produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa vontade”.

Bauman é um pensador interessante. O problema é que ele adora vender livros. E, por vezes, torna-se propositadamente prolixo. Então, extremamente prolífico e editado, converteu-se em figurinha fácil nas bocas de intelectuais e artistas de ocasião. Hoje, Bauman é um dos maiores clichês mundiais. E isso é verdadeiramente, lamentável. Não faz tanto tempo assim, publiquei crítica do espetáculo ‘Alugo minha Lígua’, cujo texto ruim, do bom Gil Vicente Tavares, também se diz inspirado em Bauman... Remeto o leitor àquele texto... para melhor dialogarmos.

O problema de ‘Homens Que Amam Demais’, frise-se, não é a ideia de mesclar filosofia com as músicas de Valdick Soriano, Lindomar Castilho, Fernando Mendes, Aguinaldo Timóteo e Reginaldo Rossi.  O problema mora na patente incompetência da direção, e inaptidão dos artistas envolvidos, em transformar tal mistura em arte. Tomou-se a opção mais fácil: fazer caretas, olhos esbugalhados, línguas de fora, ‘efeitinhos’ guturais... enfim, em Homens Que Amam Demais parece haver uma tentativa tosca de se reproduzir as performances do humorista Renato Piaba... E como sabemos R. Piaba é inimitável em sua Coisa...

O cenário de Agamenon de Abreu é um amontoado indecifrável – qual era a proposta? A iluminação, cadê? O texto, cujo autor não foi revelado, contém muitos (!) equívocos primários de Língua Portuguesa. Uma vergonha. Que só vem a comprovar em público que sobre nossos palcos, a despeito dos vários mestres e doutores em teatro, temos diversos analfabetos funcionais. Caíca Alves não tem dicção, antes, um bolo vocal inominável que escapa de sua boca. Becker, tal qual fez em ‘Diário de um Farol’, apenas grita. Becker é talvez o maior gritador do teatro baiano.

Mais uma vez uma tentativa fracassada de se realizar o tal do ‘teatro musicado’ entre nós.  O teatro na Bahia segue Líquido como sempre. Um maldoso diria “liquidado”, como sempre...

NÃO RECOMENDO.

PS.: Onde está ‘O Sumiço da Santa’, de F. Guerreiro? Sumiu?

P/ Carolina
Hedre Lavnzk Couto

sábado, abril 28


Crítica do espetáculo ‘Ensaio de Casamento’


Experimentam os delicados imprevistos daquela que parece ser uma crise conjugal definitiva. Como se não bastasse, são companheiros de profissão: estão no meio da montagem de um espetáculo do qual são os protagonistas. Ela, atriz. Ele, dramaturgo, diretor, ator. Os desafios, amores e odores da vida a dois parecem ter produzido, em ambos, uma indagação interna, para si e para o outro – “será que vamos continuar?” Tal é o roteiro daquilo que, pouco a pouco, eles tentam encarar como sendo sua “peça de separação”.

O ponto mais consistente de ‘Ensaio de Casamento’, que é dirigido por Najda Turenkko, é o texto, de Wanderley Meira. Se, por um lado a temática e o estilo de jogo almejado com a trama não chegam a ser originais, de outro, não se pode negar tratar-se de uma investida dramatúrgica bem interessante. Meira deveria escrever mais.

O que define o espetáculo, entretanto, é a direção falha de Turenkko.  A diretora ficou longe de conseguir acompanhar as peculiares exigências de um texto que requer uma minuciosa concepção de metalinguagem. Percebe-se que o objetivo do dramaturgo é compor uma atmosfera de aguda justaposição entre vida e arte, realidade e teatro, representação e verdade, espetáculo e cotidiano. Mas a encenação não alcança as ambições do material base.

A concepção espacial, que tenta materializar em cena a fusão afetiva e profissional do casal, com vistas a sugerir um turbilhão, uma desordem existencial, afasta-se de qualquer viabilidade e coerência interna, na medida em que se esquece de que o caos da vida é um; e outro, bastante diferente e difícil de ser alcançado, é o caos artístico, para o qual se faz necessário conceito e esmero técnico. A plástica da peça, notadamente a cenografia, de Maurício Cardoso, e a Iluminação de Irma Vidal, não ajudam. Não se consegue decodificar a construção cenográfica.  De maneira semelhante, difícil acreditar que a luz seja de Irma Vidal, ela assina, mas nada lembra a excelência costumeira dos trabalhos de Irma. Um desenho de luz grosseiro, composições de áreas e ambientes descabidas, transições injustificadas.

No que toca à interpretação, os desempenhos dos atores Wanderley Meira e Maria Marighella encontram-se bastante nivelados. Ele parece concordar comigo quando da plateia vejo em cena um dramaturgo promissor. Já, como ator, Meira rende-se às formas, a uma interpretação oca, parece gostar de ser visto como exímio canastrão. Maria Marighella tem performance lamentável. Atriz sem recursos corporais, [e vocais!] Trata-se de uma “voizinha” infantilizada, nasalizada, extremamente desagradável de se ouvir. Marighela e Meira quando ao longo do espetáculo representam passagens das peças Otelo; Romeu e Julieta; e A Megera Domada, de W. Shakespeare, patinam em ridículo extremo. Percebemos que eles até levam o velho inglês a sério, tentam interpretá-lo numa missão desesperada, mas não conseguem esboçar o mínimo vigor dramático.
Turenkko e seus atores acabaram por debilitar aquela que seria uma situação dramática de bom potencial. E o resultado de sua encenação surge apenas como um opaco espelho de pretensa gente de teatro para pretensa gente de teatro. Limitado, de maneira nenhuma o espetáculo afasta-se daquele tão malfadado costume umbilical.

Contudo, ainda pelo texto: Teatro Sesc Pelourinho, às sextas, sábados e domingos, às 20 horas.

Ps.: Sugiro-lhes o filme ‘Império dos Sonhos’, do diretor David Lynch. Um verdadeiro tratado artístico de como se trabalhar o jogo da metalinguagem, misturando vida real e ficção.

Hedre Lavnzk Couto

segunda-feira, abril 23

Crítica do espetáculo ‘O Canto do Cisne’

Um velho ator cômico que, embriagado, havia adormecido na coxia, desperta e quando retorna ao palco, percebe que o espetáculo já findou e o público já se foi. Daí em diante o espectador é conduzido a saber um pouco mais sobre o que Vassíli Vassílitch Svetiovídov fez dos seus sessenta e oito anos de vida, a grande maioria deles dedicados ao teatro. A princípio, sozinho e, mais a frente em companhia de Nikita Iványtch, um velho ‘ponto’, Vassíli alterna picos de nostalgia e euforia, recorda e revive os grandes momentos que experimentara sobre o tablado. Ao longo de toda uma madrugada, na solidão de um palco vazio e de uma plateia ausente, dois personagens nos mostram o quão dor e alegria são as faces de uma mesma moeda – a arte!

Escrito por Anton Tchekhov, maior dramaturgo russo, O canto do Cisne foi chamado pelo autor de ‘estudo dramático em um Ato’. Faz parte assim daquele grupo das denominadas ‘peças curtas’ de Tchekhov. Porém, essas comédias de menor extensão nada deixam a desejar em profundidade e maestria às outras peças do escritor, como ‘O Tio Vania’; ‘As Três irmãs’; ‘A Gaivota’ entre outras. São textos que exigem grande imersão dos artistas, compreensão e interpretação apurada por parte da direção e atores. E o Canto do Cisne, notadamente, um texto dramático, não deixa de assustar e comover o espectador ao exalar um lirismo tão agudo e cortante quanto aquele presente nos melhores textos de S. Beckett.

A montagem que ora se encontra em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, com direção de Bruno Bozetti, não é técnica, nem apurada, nem sofisticada, nem sustenta pretensões de grandiosidade. Mas, misteriosamente traz algo de mágico. De verdadeiro. De honesto. A montagem de Bozetti é um estranho encanto. Se sua inexperiência na direção de atores resulta no sacrifício de parte importante da grandeza psicológica dos personagens tchekhovianos, bem como na limitação dos pequenos detalhes da contracena e da mise-en-scène, o terço inicial e o terço final de sua peça alcançam momentos de entusiasmante beleza.

De todo modo, simplicidade não pode ser confundida com acomodação. A interpretação e a função cênica do personagem de Rai Alves (Nikita) merecem ser melhor trabalhadas. Às vezes temos a impressão de que ele não sabe onde se posicionar em cena. Outras vezes, Alves finge chorar, o que se tratando de dramaturgia russa, escorre no ridículo. Já a interpretação de Inaldo Santana – que nos brinda com momentos tocantes – precisa ser aprimorada, mais bem cuidada. Bruno deveria rever certas transições emocionais, aperfeiçoar mesmo a compreensão do texto. Talvez fosse interessante voltar um pouco aos trabalhos de leitura de mesa. Por várias vezes Inaldo passa ao largo de sutilezas, que Tchekhov coloca como essenciais para a força total da situação dramática. A dicção de Santana também pode obter melhores resultados. A produção do espetáculo esqueceu-se de creditar a tradução do texto original. Quem é o tradutor?

Os artistas de teatro em salvador temem Anton Tchekhov. Devagarzinho quem sabe isso mude. A dramaturgia russa é uma verdadeira escola de arte dramática, senhores. E, Fernando Guerreiro, estamos esperando que você se anime a nos presentear com um dos clássicos russos, tão atuais...

Hedre Lavnzk Couto

segunda-feira, abril 16

Crítica do espetáculo 'A Mulher de Roxo'

Já vi muitas peças do diretor Deolindo Checcucci. E gostei bastante de ‘Asa Branca’; ‘Maria Quitéria’; ‘Raul seixas’, e ‘Eu, Brecht’. Mas, sobretudo, passei a admirar e respeitar o trabalho de Checcucci quando assisti sua memorável encenação de ‘Na Selva das Cidades’ (1996). Essa foi talvez a melhor peça de teatro já vista por mim em Salvador. Não sou muito inclinado a adjetivos, mas, Na Selva das Cidades foi (na verdade, ainda é, porque Deolindo o tem em DVD) um objeto artístico esplendoroso, positivamente impressionante sob todos os aspectos.

Conheci o texto de ‘A Mulher de Roxo’ quando Deolindo foi meu professor de Cenografia 1, na hoje agonizante Escola de Teatro da UFBA. Naquela oportunidade, por generosidade, Deolindo dividia habitualmente conosco muito da riqueza de sua vasta experiência de homem de teatro. Assim, mais de uma vez nos levou textos de sua autoria para discutirmos, principalmente sob os aspectos correlatos à cenografia.

Segundo o diretor, o desejo de escrever uma peça sobre a enigmática mulher de roxo emergiu com grande força quando, por acaso, leu um artigo jornalístico que tentava lançar mais um olhar sobre a aura da peregrina que por décadas conferiu, assiduamente, ares de espetacularidade à rua Chile e ao centro velho de Salvador.

Recordo-me que em sala de aula realizamos leituras do texto. Mas, de cara, constatei que possuía narrativa muito frágil, limitada, para se buscar dar conta de transmitir algo semelhante àquele impacto que todos sentiam ao se deparar com a fascinante dama de roxo, quase sempre majestosamente protagonista à porta da extinta loja Slopper. Pensei então que o texto tratasse de uma primeira versão e que, pelo menos, ao longo do processo de montagem Deolindo procederia às necessárias modificações...

Mas não é o que se vê na encenação ora em cartaz no Teatro Martim Gonçalves. É verdadeiramente uma pena, mas, ‘A Mulher de Roxo’ desmerece o vigor do repertório artístico de D. Checcucci. Trata-se de espetáculo inconsistente. Ao longo dos seus quase setenta minutos, a peça não varia de um constrangedor tom de “ensaião”. Falta ritmo, engrenagem. Restando a certeza de que algo faltou ser atingido, alcançado, maturado.

E a raiz maior do problema mora na opção dramatúrgica. Uma estrutura narrativa que desesperadamente anseia dar conta de toda a biografia da personagem. E se a previsibilidade do desenho início-meio-fim, não chegou a prejudicar os outros espetáculos do diretor, neste atual lhe foi um complicador decisivo para o aspecto geral da obra. O enredo se desenrola de maneira atipicamente apressada, diálogos amontoam-se de maneira incompreensível, as emoções afloram precipitadamente. E o resultado: a peça não consegue dar conta da grandiosidade mítica da Mulher de Roxo.

E se a direção optou por estabelecer uma fábula linear, mostrando-nos todas as fases e principais vicissitudes experimentadas pela protagonista no transcorrer de sua vida, esse didatismo exacerbado fez com que se perdesse o que de mais forte e interessante existe em torno do mito. Num verdadeiro desperdício, acreditem, a Mulher de Roxo, tal qual eternizada e multiplicada no imaginário popular de três milhões de soteropolitanos, aparece em cena, envolvida em seu Hábito roxo, apenas uma vez, nos instantes finais da peça. Assim, diluiu-se toda a riqueza da estória [e da história], perdeu-se na incompletude do fazer artístico todo o fascínio, o mistério, o verdadeiro arrebatamento poético contido na lenda urbana.

O trabalho de Deolindo se contenta em ser meramente documental (na verdade, uma versão de fatos reais) ao invés de ousar sugerir sensações inesquecíveis ao espectador. Se dizem que aqueles que viram a Mulher de Roxo jamais a esquecem, que competente seria um espetáculo que conseguisse artisticamente traduzir uma fatia dessa emoção para os menos afortunados que não tiveram a oportunidade de vê-la de perto.

A dinâmica do espetáculo possui seríssimos problemas. Se em ‘Maria Quitéria' e ‘Asa Branca’ Deolindo consegue imprimir a quase perfeita medida, dotando todos os elementos do espetáculo de eficiente interação; em A Mulher de Roxo, as escolhas quanto ao estabelecimento de núcleos dramáticos, criação de ambientes e atmosferas, bem como as transições entre cenas e quadros são desafinadas, provocando repetidos buracos que vão ralentando e travando a narrativa, certamente comprometendo o interesse do espectador. A cenografia não é bem talhada para as especificidades do palco à italiana do Martim Gonçalves. Também os atores ao trabalharem com cenário e adereços, principalmente em momentos onde têm de montar e desmontar o ambiente, o fazem de maneira suja, mostrando deficiência de ensaio.

Na verdade não há harmonia nem sincronia entre cenografia, composição musical, iluminação e atuação dos atores. Isso, aliado a um desenho de cena superficial e rígido, resultou no visível desarranjo do andamento cênico. Contudo, depois do texto, a iluminação foi o elemento que mais prejuízos causou ao espetáculo. A escolha aparentemente aleatória de lentes e a opção geral por cores quentes e luz aberta causam uma confusão plástica que produz uma sensação de afastamento.

Frise-se, ainda, que os diálogos são improváveis, sem a menor organicidade ou força psicológica, o que, sem dúvida, cria grande dificuldade para os atores delinearem seus personagens e sustentarem suas contracenas. Selma Santos está muito aquém de uma Mulher de Roxo. Talvez o fato de interpretar todas as idades da personagem tenha sobrecarregado sua dedicação e atrofiado seu desempenho. Seus piores momentos são aqueles onde o texto é em verso. Sua declamação precisa ser melhor trabalhada, se declamar ali for o objetivo. No geral, em cena, vê-se, de ponta a ponta, uma protagonista apagada, sem luz e "sem roxo". Não notamos em cena aquela força cênica que deve diferenciar uma protagonista de seus coadjuvantes.

O que temos em A Mulher de Roxo é um texto que pendula de maneira incerta e injustificada do lírico ao drama, causando um destempero cênico. A encenação, por sua vez, não criou mecanismos para superar tais limitações de uma dramaturgia já originariamente engessada. Disse a vocês aqui, há uma semana, que guardava boas expectativas para esse novo trabalho de Checcucci. Infelizmente...

Esperava que Deolindo fizesse, tal qual fez em Na Selva das Cidades, um espetáculo escandalosamente expressionista. Sim. Porque penso que a forma mais rica de se abordar um pretexto como a Mulher de Roxo é conferir à encenação uma estética cuidadosamente expressionista, onde essa Mulher, essa “Rainha”, essa entidade enigmática e polissêmica, possa projetar e materializar sobre o palco todas as suas contradições e fantasmas, dando assim vazão com plenitude às suas diversas facetas , que são, sobretudo, grande composição do imaginário popular.


Hedre Lavnzk Couto

domingo, março 11

Crítica do espetáculo ‘Salmo 91’

Quando, meses atrás, publiquei neste blog crítica de ‘O Melhor do Homem’, já alertava que a cena baiana havia feito uma importante aquisição ao acolher o diretor teatral Djalma Thürler. Àquela época discordei duramente de certos caminhos tomados por seu discurso ao abordar, na peça, de maneira truncada e, mesmo tendenciosa, alguns aspectos da homossexualidade. Contudo, já ali, percebia-se um encenador, um artista de vasta cultura filosófica e teatral.

Com ‘Salmo 91’, o baiano que gosta de teatro deve comemorar. Pois, confirma-se com Türler, a chegada de um encenador capaz de pensar e discutir o mundo através das ferramentas mais essenciais e caras ao teatro. Neste espetáculo, Djalma demonstra estar rumo a consolidação de um estilo bastante peculiar e acurado.

Ao contrário do que se viu em ‘O Melhor do homem’, ‘Salmo 91' é uma obra artística urgente. Que, se de um lado não se rende ao supérfluo e nem cai na tentação de ser adereço umbilical de autor, de outro também prova que a arte não pode contentar-se com o papel de simples noticiário do quotidiano. Nem iludir-se com o fetiche de competir tecnologicamente com as linguagens do cinema ou mesmo da televisão – esmagadora sádica do cérebro nacional.

Dib Carneiro Neto escreveu o texto de ‘Salmo 91’ inspirado em 'Estação Carandiru', romance do médico Dráuzio Varela. A estrutura dramática é composta por fragmentos de vidas e lembranças de dez detentos de um dos pavilhões do antigo Presídio. São diversos monólogos que, costurados pela interação de um dos personagens, ganham a forma de uma trajetória coletiva, comunitária, marcadamente trágica pelo histórico desfecho da chacina que fulminou mais de uma centena de presos de um dos Blocos do Carandiru, ainda nos anos mil novecentos e noventa.

O advento de ‘Salvo 91’ é muito oportuno. Basta dizer que a despeito dos já incontáveis gargalos e problemas estruturais e morais porque passa a sociedade brasileira, a atual situação do Sistema Penitenciário Brasileiro é uma bomba relógio que já vem se preparando para explodir há pelo menos quatro décadas. A falência desse Sistema, sem dúvida, é consequência da maneira irresponsável e mesquinha com que os homens eleitos para conduzir o Estado Nacional encaram a Administração Pública, aqui especificamente a área da Segurança Pública. (A Bahia que o diga!).

Espetáculos como esse têm importância de longo alcance. E, sim, Djalma, você é muitíssimo bem vindo com seu “palco de questionamento social”. Nossos tempos necessitam de uma arte mais utilitária e menos coquete. Na burrice e insanidade de dias onde cada vez mais somos bombardeados e anulados por intrometidas cascatas de informações – descartáveis, abelhudas e publicitárias – onde o jornalismo, por generosos incentivos de seus anunciantes e protetores, muitas vezes tem esquecido o seu honroso papel de bem informar e formar opiniões, sim, o teatro DEVE tomar a peito a missão de informar, debater ideias, provocar as perguntas, deve ser um ambiente político, sim, por que não?

Em tempos de Brasil sexta Economia do mundo, de investimentos estratosféricos em Mundial de futebol, em olimpíadas, em Trem bala Rio-SP-Campinas, como admitir ou justificar a total ausência de planejamento e de uma reforma do Sistema Penitenciário? Como admitir que o princípio da Dignidade Humana – postulado maior da Constituição Federal de 1988 – seja ultrajado por Penitenciárias Brasil a fora, superlotadas, verdadeiras universidades do crime, incubadoras de doenças!?

Alguns indivíduos já nascem com a índole predisposta ao crime, como gostavam e ainda gostam de sustentar alguns? Ou o determinismo é que tem a razão, o homem é produto do meio...? As altas taxas de criminalidade no Brasil são consequência da miséria, do escasso acesso a educação e falta de oportunidades? Quais as regras paralelas existentes no mundo dos detentos? Como vivem entre si e praticam suas próprias leis? É possível ter algum contentamento, viver, fazer planos à espera da liberdade, é possível a regeneração intramuros? Há arrependimentos? Prazer em ser bandido? E a moral? Os códigos de honra e ética? Como a sexualidade é vista e praticada? Até que ponto, dentro do Presídio, transar com alguém do mesmo sexo é considerado, por eles próprios, uma prática homossexual? São estas questões que ‘Salmo 91’ denuncia ao espectador.

O peculiar, entretanto, é o modo pelo qual Djalma Türler e seus artistas transformam tudo isso em arte teatral. Mais uma vez em parceria com o cenógrafo José Dias, o encenador consegue, longe de ser árido, nos apresentar um espetáculo forte, mas também lírico. Sobretudo porque seu principal ingrediente é a [teatralidade], essa coisinha muito dita e propalada, mas que só poucos dominam; outros a consideram cafona nos dias de hoje, por ignorância cênica! Teatralidade e jogo!, basicamente são os pilares das consistentes dinâmica e estética deste ‘Salmo’...

Nos últimos anos, poucas vezes se viu em Salvador uma direção tão senhora dos elementos do espetáculo. Tudo funciona em perfeita harmonia. Gozando de ótima amarração, basta dizer que a peça tem excelentes transições de cenas. Cenografia, luz, figurino, música e efeitos sonoros, intepretação dos atores, todos esses aspectos estão bem concebidos e executados. Possuem, portanto, conceito e funcionalidade. Anote-se, que Djalma nesta peça, evoluiu bastante na direção de atores.

O elenco formado por Duda Woyda, Lucio Tranchesi Rubio, Lucas Lacerda, Fábio Vidal e Rafael Medrado (cada um deles interpreta dois personagens) está no geral muito bem. Os cinco atores trazem dez interpretações consistentes, algumas delas até muito inspiradas e comoventes. Destaque para Duda woyda, que melhorou muito desde seu último papel. Ressalte-se também o belo desempenho de Rafael Medrado quando sustenta o seu primeiro monólogo na peça. Mas, sobretudo, devo mencionar Lucio Tranchesi Rubio, em seu segundo momento, quando interpreta um detento homossexual, a Veronike. Lucio consegue fazer uma personagem tocante, cuja profundidade e riqueza humana encontrada, é responsável pelo melhor momento do espetáculo. Diria mesmo que é imperdível conferir este trabalho de Tranchesi. Vejam!

Ponto fraco 1: o espetáculo é exageradamente longo. Com duração de aproximadamente 140 minutos, corre-se o risco de produzir cansaço no público. A propósito de quem interessar possa: eu dessa vez fiz, sim, uma enquete, e, de fato, posso falar por quem eu entrevistei: algumas pessoas se cansaram. Mas é provável que ao longo dos dias Türler perceba que pode e deve enxugar alguns dos monólogos, para o bem maior do espetáculo.

Ponto fraco 2: Não entendi onde essa encenação trata da “crise da masculinidade”. Aliás, eu sequer sei o que significa isso. Acredito que estamos vivendo a ‘crise da contemporaneidade’, ‘a crise de talento no teatro baiano’, 'a crise econômica da Europa’, enfim, nós próprios temos constantes crises, uns mais do que outros, é bem verdade... mas, “crise da masculinidade”, não entendo o que Djalma quer dizer com isso...

Recomendo esta peça!

Em Cartaz no teatro da Aliança Francesa, de quinta a domingo, às 20 horas.

PS.: amigos, lhes sugiro a leitura da crítica do espetáculo citado - 'O melhor do homem'. Arquivo: mês de janeiro. boa leitura!

Hedre Lavnzk Couto

segunda-feira, março 5

Crítica da montagem 'La Ronde'

Senhoras e senhores, Charles Dullin, diretor de célebre encenação de Ricardo III, de W. Shakespeare, gostava de afirmar que “a direção teatral necessita capacidade crítica e requer habilidade para fundir elementos heterogêneos numa forma de arte inteiramente consistente”. Bom...

Fato é que no último sábado (03/03) vi a peça La Ronde. Mas, antes de proceder à análise, o dever do ofício me impele a registrar um furo jornalístico: Harildo Déda está morto. Digo, o mito intocável, alimentado durante décadas por conta da ignorância e pobreza de repertório cultural da nossa província, o mito inquestionável de grande mestre das Artes Cênicas, ora desaba em queda livre.

Embora sempre haverá quem no jornal A Tarde negue, a direção de La Ronde, por Harildo Déda, nos traz a infeliz confirmação de um artista já cansado, desleixado, senão preguiçoso e, até mesmo, desrespeitoso para com o público. E se não é assim, como explicar, à luz da honestidade, os reiterados “abacaxis” levados aos palcos por Déda nos últimos anos.

Saco da memória sua atabalhoada montagem do ‘Hamlet’, que só impressionou pelo barulhento subir e descer de portas metálicas, comandado pelo intragável anti-ator Marcelo Flores, na pele de ninguém menos do que o Rei Cláudio. E falemos também, leitor, de sua versão de ‘As Bruxas de Salém’, peça marcante pelo constrangedor desmantelo cênico; onde nunca antes tinha o público (e Arthur Miller) testemunhado um encenador usar tão mal um proscênio. E mais, que dizer de sua ‘Farsa da Boa Preguiça’, espetáculo onde simplesmente o mestre se absteve de fazer a direção de seus atores, deixando o ator Eduardo Oliva, a título de exemplo, subir ao palco com uma construção vocal e corporal que remetia a uma exata cópia do Salsicha do Scooby Doo? Salsichas à parte...

Se a dramaturgia de La Ronde, como querem alguns, aborda um “universo de complexidade psicológica profunda, onde vários casais discutem e vivem questões de capital relevância da e para a raça humana”, o resultado desta encenação de H. Déda está mais para a genialidade artística dos esquetes de um ‘Zorra Total’. Em minha opinião o texto original do Arthur Schmitzier já é uma antologia de bobagens. Banal, inferior à maioria das sub-comédias românticas do cinema matinê americano. E o que Harildo Déda fez?

Subestimou o grau de dificuldade de levantar o tal do material dramatúrgico. Eu afirmei que o texto é ruim. Mas observem que estes são justamente os mais complicados de encenar. E o que tio Harildo fez? Decidiu heroicamente encená-lo em um único mês. E o que mais? Para tanto ele topou encarar dez atores. Mesmo sabendo que o elenco (com três exceções) é fraquíssimo. Fraquíssimo. Ok. Ok. Ocorre que Déda é Déda. Ou não é mais?

Conta-nos a historiadora do teatro mundial, Margot Berthold, que “quando o grande mestre da abstração cênica, Leopold Jessner, ao retornar, em 1920, de uma viagem por alguns teatros de províncias, foi questionado sobre suas impressões, deu uma resposta depois muito citada: ‘Escadas, nada mais além de escadas’”.

Já alertei, neste blog, em outras análises, a respeito de certas peculiaridades constantes da Sala do Coro do Teatro Castro Alves. Apenas para reeditar duas delas, trata-se de palco com pouca profundidade e caixa cênica com pé-direito baixíssimo. Essas características têm sido madrastas em descortinar as inabilidades de diversos diretores em compor mise en scène.

Harildo convocou Rodrigo Frota para conceber um cenário do qual a encenação acabou refém. Um jogo de escadas que forma uma espécie de semi-círculo por quase toda a área central do palco, circundado por meia dúzia de postes de luz, e mais algumas resoluções [horríveis]. Um cenário ‘tampão’ (aliás, meu querido amigo Rodrigo tem se especializado nesses monstrengos) sem o menor conceito, criatividade e, principalmente, sem funcionalidade cênica. De forma que o desenho de cenas e a movimentação dos personagens tornaram-se extremamente repetitivos.

A direção também não pôde contar muito com o auxílio do desenho de luz dos iluminadores (ainda é assim que se denomina a função?) Eduardo Tudella e Pedro Dultra. A luz aqui é inusitadamente ruim. Não trabalha em parceria com o cenário na construção de áreas e atmosferas. Gozado é que a fala de um dos personagens já alerta para a necessidade de criar-se atmosferas para cada momento da vida. O diretor e seus artistas não se atentaram à dica preciosa do dramaturgo. O resultado? Monotonia, meu caro professor Tudella, monotonia. Cento e quarenta minutos de pura monotonia.

Outro aspecto que choca negativamente na encenação, além da má distribuição dos ambientes, é a confusão, a indefinição no que toca ao aproveitamento da presença do elenco, enquanto volume no espaço cênico. Uma vez que as cenas acontecem basicamente entre duplas de personagens, em diversos momentos temos a nítida impressão de que o diretor teve vergonha, timidez em assumir os outros oito atores como coro da ação, preferindo, na larga maioria do tempo, deixá-los, ou enclausurados nas coxias (o que fazia o palco explodir em vazio) ou mesmo ociosos, caídos ou vagando pelo tablado, produzindo grande dispersão visual. Em duas palavras: displicência, pressa... e o resultado do pouco caso foi...

Harildo não conseguiu se salvar nem na [direção de atores], sua propalada especialidade. Mas, para começo de conversa, deixando o falso marketing de lado, vamos de pronto acabando com essa falácia de que o elenco desta peça é formado por grandes nomes do teatro baiano. Porque se assim for, não convidem nem os seus inimigos para testemunharem uma peça com aqueles que seriam os ‘pequenos nomes’. Permito-me um parêntese: - Aliás, ao que parece, hoje é muito fácil ser grande por aqui, não é? Outro dia mesmo, a Eduarda Uzêda imprimiu que em Salvador existe uma diretora teatral CONSAGRADA!, acreditem, que atende pelo nome de Fernanda Júlia (who’s Bad?)

Relapso, o grande Baco nada acrescentou aos seus atores fracos, deixando-os à deriva. Annalu Tavares, não existe. Bruno Souza (na eternização de sua velha Benedita), não existe. Manhã Ortyz, não existe. Márcio Bernades, nunca será. Paula Moreno, ainda não. Ciro Sales? Thais Laila, realmente é ”uma coisinha doce”. Antonio Fábio, um bom ator, novamente mal aproveitado, com exagerada impostação vocal, além de sustentar fragilíssimas partituras corporais. Caio Rodrigo, um bom ator, porém, nesta peça, preguiçosamente se deixou interpretar o mesmo personagem que defende em ‘Pólvora e Poesia’. Aicha Marques, encantadora e boa atriz, no entanto, Harildo devia tê-la impedido de saturar seu personagem com resquícios de suas experiências anteriores em mímica e pantomima.

No geral, o elenco não tem liga. Raramente se verifica uma contracena verdadeira. Aliás, esse é um defeito recorrente no teatro de Salvador, diga-se de passagem. E em La Ronde identificamos outro problema bastante comum nestas plagas: atores que não sabem falar em cena. Quando não impostam além do além, mal conseguem articular uma breve seqüência de consoantes ou pronunciar a última sílaba.

Inconsistente. Não recomendo. Só para os masoquistas. Prato cheio...

PS: Lear, Lear, Lear... escute ao menos uma vez a paródia do pobre Macbeth: - A vida é sombra passageira. Um mísero ator que chega, borra a cena inteira... Vomita a sua fala e sai. E ninguém mais o nota.

Hedre Lavnzk Couto.

p/ Eduarda Uzêda.

Recomendo...

Amigos, lhes indico o site www.cinelente.wordpress.com

boa leitura!

sexta-feira, fevereiro 10

Segue um texto da EFE – Londres, sobre a atual situação do teatro daquela capital

"Teatros londrinos batem recorde de arrecadação pelo 8º ano consecutivo:

Os teatros de West End, como é reconhecido o circuito de grandes palcos do centro da capital britânica, bateram o recorde de arrecadação na bilheteria pelo oitavo ano consecutivo em 2011, alcançando 631,4 milhões de euros.

Os números, divulgados nessa terça-feira pela SOLT - Sociedade de Teatro de Londres, fazem parte de um balanço que acompanha as bilheterias de 52 salas de teatros de Londres, o qual evidencia que em 2001 a venda de ingressos aumentou 3,1% em relação ao ano de 2010.

Segundo a organização, o aumento na venda de ingressos foi embalado por algumas estreias de musicais, caso de Matilda, e também pelos espetáculos de grande sucesso, como Os Miseráveis, que há 26 anos consecutivos é apresentado na capital britânica.

O aumento na arrecadação das bilheterias também foi amparado pelo êxito de novas produções , como a versão de Frankenstein, assinada pelo diretor de cinema Danny Boyle, além da premiada Jerusalém e a comédia One Man, Two Guvnors (...)".

Talvez essas informações possam nos levar a pensar sobre o nosso contexto, amigos.

sábado, janeiro 28

Crítica do espetáculo ‘R$ 1,99’

Criativo, inteligente e engraçado ao mesmo tempo. Trata-se de entretenimento, com doses urgentes de reflexão. Escrito, dirigido e interpretado por Ricardo Castro, que também assina figurino, sonoplastia, iluminação e cenografia, ‘R$ 1,99’ é um espetáculo que ganha destaque justamente por se afastar do tom umbilical, tão predominante dentre as peças contemporâneas que se propõem a abordar os pedregulhos do fazer artístico.

Aqui, ao contrário, o artista realiza aquele que podemos chamar de teatro ‘vivo’. De maneira sutil e descontraída, faz brotar no público um grande leque de interrogações, assim nos convidando a todos para o bom debate de ideias – que perpassa desde questões relacionadas ao valor da arte e vai alcançando uma espécie de radiografia lúdico-antropológica do atual cidadão baiano-brasileiro.

INCLASSIFICÁVEL

Em termos de gênero e estética, ‘R$ 1,99’ é de difícil carimbo. Pela maior parte do material apresentado, muitos o classificariam como sendo um stand up comedy. O que a meu ver não é o caso. Basta dizer que Ricardo Castro enche o palco com vários personagens, metidos numa gama de situações plurais.

Um monólogo, a rigor, também penso que não é. Antes, um conjunto de pequenos solos envolvidos por um arranjo dramatúrgico bem costurado e maleável, com vistas a atualizações diárias, se necessárias. Para simplificar, podemos combinar que ‘R$ 1,99’ é teatro. Teatro recomendável. Exemplar daqueles que trazem lembranças da etimologia da palavra - ‘thea-tron’: lugar de onde se vê, ou de onde se é visto, com interesse...

O trabalho peca, porém, quando se deixa estender aos noventa minutos. 1 hora seria o bastante.

Visto numa sexta-feira (27-01-12)
Hedre Lavnzk Couto

ps. sugiro a leitura de alguns textos que se encontram nos arquivos deste blog: 'comédia em pé'; e críticas dos espetáculos 'pólvora e poesia'; 'alugo minha lígua'; e 'Thomas toma blues'.