domingo, setembro 18

Crítica do espetáculo Pólvora e Poesia

Pela primeira vez estive no Centro Cultural Barroquinha. É um bom espaço, com grande potencial para diretores e artistas corajosos darem as caras às tapas. Ou às palmas, como alguns devem preferir. Fui ver esta outra peça do Fernando Guerreiro, devendo mesmo admitir que dele me agrada mais a coragem do que a busca do senso eclético.

‘Pólvora e Poesia’ tem como pretexto dramático apresentar a conturbada história da famosa relação passional vivida pelos poetas Arthur Rimbaud (Talis Castro) e Paul Verlaine (Caio Rodrigo). Diante da trama, o público é levado a refletir se há realmente limites e diferenças entre o amor e a paixão. Se são sentimentos idênticos, ou complementares ou excludentes. O interessante é que na platéia, com certeza, deve ter havido espectadores com os mais variados pontos de vista, e os artistas? O que pensam...?

Em teatro é importante conseguir concretizar o que se pensa. Um escritor disse certa vez que “amor são dois corpos querendo se destruir.”, li, e achei essa uma boa definição para a paixão. Não há amor entre os personagens históricos Rimbaud e Verlaine e, sim, egoísmo. Necessidade de destruir o outro para ter, ter para destruir. Ou seja, paixão, sexo. E se eu ator, diretor vou falar disso sobre o palco, precisarei arrebatar o público.

Falta absinto a este trabalho de Fernando Guerreiro. Por outro lado, a montagem é coerente em linhas gerais. Fazendo claramente opção por uma linha épica de narrativa, a encenação é bem cuidada, detalhista e inteligente. A área cênica é configurada por um quadrado, com a platéia em volta. O Cenário de Rodrigo Frota funciona bem: uma grande mesa no centro do palco, mais duas cadeiras, e livros soltos por toda a parte.

A peça tem início com os dois atores já em cena. Rimbaud deitado numa das extremidades da mesa - Registre-se que a maior parte da ação ocorrerá sobre ela – e Verlaine concentrado noutro ponto. De repente, através de um efeito bem executado, a mesa ‘quebra-se’ ao meio, formando duas rampas unidas pelas extremidades mais baixas. E aí teremos por todo o espetáculo uma bela metáfora visual: a grande mesa como o caminho da vida, o livro, a ser escrito, percorrido. Ao fraturar-se ao meio, simbolizando duas trajetórias que se chocam, se unem em seus extremos, para depois partirem. Eis, pois, a própria paixão. Mas isso foi a minha viagem de espectador, sabe lá Deus se alguém pensou nisso.

No primeiro momento da peça, usa-se outro subterfúgio do épico, quando Verlaine, dando a entender que estivesse num Júri, fala diretamente à platéia. Este momento não é bom. Caio gesticula muito, imposta a voz além da conta, chegando quase a declamar. Na seqüência, é a vez de Rimbaud contar do seu passado. Também para Talis este é um momento problemático – não se consegue entender a quem ele se dirige, muitos gritos, bastante impostação.

É razoável separar o tipo de interpretação desta peça em três blocos: o primeiro momento é estabelecido por dois monólogos (para cada personagem). Cada um monologa na sua vez. Aqui não há contracena. O que mais chama a atenção é o excesso de gesticulação do ator Caio. Na segunda etapa verifica-se uma espécie de contracena, quando ambos dividem, cada qual em suas marcas, a leitura de trechos de cartas enviadas por Rimbaud. O terceiro modo é a fase da contracena direta, quando da chegada de Rimbaud à casa de Verlaine. Daí em diante, as modalidades de interpretação se sucedem a sabor da intenção do diretor.

Foi realmente boa a escolha de promover a encenação no salão rústico do Centro cultural. Por outro lado, o tipo de disposição cênica adotado, o quadrado, onde os atores estão mais próximos do público, pode acabar numa cilada, só funcionará plenamente se a interpretação contar com o vigor requerido. A movimentação dos atores é boa. A prontidão e a entrega corporal que eles apresentam é uma das coisas mais gratificantes da noite.

Mas a peça não choca pelo nu de dois personagens roçando uma genitália na outra e, sim, porque os atores ao invés de interpretarem, declamam. Com isso o necessário mergulho na embriaguez passional do poetas não acontece. A bela proposta do conflito é dissolvida na exposição de uma fábula que se torna boba. Talvez falte um bocadinho de experiência a Talis, como quando ele fala enquanto joga uma cadeira ao chão, e não se ouve nada do que é dito.

Em suma, a maior deficiência da peça é a interpretação, ambos os atores não conseguem nos brindar com a “essência do amor entre duas figuras fortes, brilhantes e contraditórias”, com suas “raivas, ideais, entusiasmo, tédio”, estes sentimentos os interpretes de Guerreiro não conseguem expressar o suficiente para arrebatar-nos.

Em todo caso, Fernando aplica direitinho a receita épica do bolo: monólogos entrecruzados; quebra da quarta-parede; dureza de luzes brancas, a pino, que, em certos momentos, acendem sobre os espectadores; rejeição à caixa à italiana; originais ruídos na trilha sonora; figurinos que vão virando farrapos à medida que os personagens se destroem psicologicamente.

Os figurinos de Hamilton Lima são bons; a iluminação de Luciana Liege é competente; a direção musica de Juracy do amor ajuda muito ao todo; e o texto de Alcides Nogueira, não sei até que ponto foi adaptado.

Hedre Lavnzk Couto

p/ Carolina