Já vi muitas peças do diretor Deolindo Checcucci. E gostei bastante de ‘Asa Branca’; ‘Maria Quitéria’; ‘Raul seixas’, e ‘Eu, Brecht’. Mas, sobretudo, passei a admirar e respeitar o trabalho de Checcucci quando assisti sua memorável encenação de ‘Na Selva das Cidades’ (1996). Essa foi talvez a melhor peça de teatro já vista por mim em Salvador. Não sou muito inclinado a adjetivos, mas, Na Selva das Cidades foi (na verdade, ainda é, porque Deolindo o tem em DVD) um objeto artístico esplendoroso, positivamente impressionante sob todos os aspectos.
Conheci o texto de ‘A Mulher de Roxo’ quando Deolindo foi meu professor de Cenografia 1, na hoje agonizante Escola de Teatro da UFBA. Naquela oportunidade, por generosidade, Deolindo dividia habitualmente conosco muito da riqueza de sua vasta experiência de homem de teatro. Assim, mais de uma vez nos levou textos de sua autoria para discutirmos, principalmente sob os aspectos correlatos à cenografia.
Segundo o diretor, o desejo de escrever uma peça sobre a enigmática mulher de roxo emergiu com grande força quando, por acaso, leu um artigo jornalístico que tentava lançar mais um olhar sobre a aura da peregrina que por décadas conferiu, assiduamente, ares de espetacularidade à rua Chile e ao centro velho de Salvador.
Recordo-me que em sala de aula realizamos leituras do texto. Mas, de cara, constatei que possuía narrativa muito frágil, limitada, para se buscar dar conta de transmitir algo semelhante àquele impacto que todos sentiam ao se deparar com a fascinante dama de roxo, quase sempre majestosamente protagonista à porta da extinta loja Slopper. Pensei então que o texto tratasse de uma primeira versão e que, pelo menos, ao longo do processo de montagem Deolindo procederia às necessárias modificações...
Mas não é o que se vê na encenação ora em cartaz no Teatro Martim Gonçalves. É verdadeiramente uma pena, mas, ‘A Mulher de Roxo’ desmerece o vigor do repertório artístico de D. Checcucci. Trata-se de espetáculo inconsistente. Ao longo dos seus quase setenta minutos, a peça não varia de um constrangedor tom de “ensaião”. Falta ritmo, engrenagem. Restando a certeza de que algo faltou ser atingido, alcançado, maturado.
E a raiz maior do problema mora na opção dramatúrgica. Uma estrutura narrativa que desesperadamente anseia dar conta de toda a biografia da personagem. E se a previsibilidade do desenho início-meio-fim, não chegou a prejudicar os outros espetáculos do diretor, neste atual lhe foi um complicador decisivo para o aspecto geral da obra. O enredo se desenrola de maneira atipicamente apressada, diálogos amontoam-se de maneira incompreensível, as emoções afloram precipitadamente. E o resultado: a peça não consegue dar conta da grandiosidade mítica da Mulher de Roxo.
E se a direção optou por estabelecer uma fábula linear, mostrando-nos todas as fases e principais vicissitudes experimentadas pela protagonista no transcorrer de sua vida, esse didatismo exacerbado fez com que se perdesse o que de mais forte e interessante existe em torno do mito. Num verdadeiro desperdício, acreditem, a Mulher de Roxo, tal qual eternizada e multiplicada no imaginário popular de três milhões de soteropolitanos, aparece em cena, envolvida em seu Hábito roxo, apenas uma vez, nos instantes finais da peça. Assim, diluiu-se toda a riqueza da estória [e da história], perdeu-se na incompletude do fazer artístico todo o fascínio, o mistério, o verdadeiro arrebatamento poético contido na lenda urbana.
O trabalho de Deolindo se contenta em ser meramente documental (na verdade, uma versão de fatos reais) ao invés de ousar sugerir sensações inesquecíveis ao espectador. Se dizem que aqueles que viram a Mulher de Roxo jamais a esquecem, que competente seria um espetáculo que conseguisse artisticamente traduzir uma fatia dessa emoção para os menos afortunados que não tiveram a oportunidade de vê-la de perto.
A dinâmica do espetáculo possui seríssimos problemas. Se em ‘Maria Quitéria' e ‘Asa Branca’ Deolindo consegue imprimir a quase perfeita medida, dotando todos os elementos do espetáculo de eficiente interação; em A Mulher de Roxo, as escolhas quanto ao estabelecimento de núcleos dramáticos, criação de ambientes e atmosferas, bem como as transições entre cenas e quadros são desafinadas, provocando repetidos buracos que vão ralentando e travando a narrativa, certamente comprometendo o interesse do espectador. A cenografia não é bem talhada para as especificidades do palco à italiana do Martim Gonçalves. Também os atores ao trabalharem com cenário e adereços, principalmente em momentos onde têm de montar e desmontar o ambiente, o fazem de maneira suja, mostrando deficiência de ensaio.
Na verdade não há harmonia nem sincronia entre cenografia, composição musical, iluminação e atuação dos atores. Isso, aliado a um desenho de cena superficial e rígido, resultou no visível desarranjo do andamento cênico. Contudo, depois do texto, a iluminação foi o elemento que mais prejuízos causou ao espetáculo. A escolha aparentemente aleatória de lentes e a opção geral por cores quentes e luz aberta causam uma confusão plástica que produz uma sensação de afastamento.
Frise-se, ainda, que os diálogos são improváveis, sem a menor organicidade ou força psicológica, o que, sem dúvida, cria grande dificuldade para os atores delinearem seus personagens e sustentarem suas contracenas. Selma Santos está muito aquém de uma Mulher de Roxo. Talvez o fato de interpretar todas as idades da personagem tenha sobrecarregado sua dedicação e atrofiado seu desempenho. Seus piores momentos são aqueles onde o texto é em verso. Sua declamação precisa ser melhor trabalhada, se declamar ali for o objetivo. No geral, em cena, vê-se, de ponta a ponta, uma protagonista apagada, sem luz e "sem roxo". Não notamos em cena aquela força cênica que deve diferenciar uma protagonista de seus coadjuvantes.
O que temos em A Mulher de Roxo é um texto que pendula de maneira incerta e injustificada do lírico ao drama, causando um destempero cênico. A encenação, por sua vez, não criou mecanismos para superar tais limitações de uma dramaturgia já originariamente engessada. Disse a vocês aqui, há uma semana, que guardava boas expectativas para esse novo trabalho de Checcucci. Infelizmente...
Esperava que Deolindo fizesse, tal qual fez em Na Selva das Cidades, um espetáculo escandalosamente expressionista. Sim. Porque penso que a forma mais rica de se abordar um pretexto como a Mulher de Roxo é conferir à encenação uma estética cuidadosamente expressionista, onde essa Mulher, essa “Rainha”, essa entidade enigmática e polissêmica, possa projetar e materializar sobre o palco todas as suas contradições e fantasmas, dando assim vazão com plenitude às suas diversas facetas , que são, sobretudo, grande composição do imaginário popular.
Hedre Lavnzk Couto
segunda-feira, abril 16
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Gostei muito do texto. Muito bem escrito. E muito elegante. Parabéns.
ResponderExcluirSempre aprendo muito sobre elegância com os seus textos, meu caro Henrique. Precisamos marcar aquele café. Abraço.
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