Há muito ouvia falar de Tocaia no Asfalto, filme do cineasta baiano Roberto Pires, que esteve em cartaz em 1962. Amigos não se cansavam de fazer-me entusiasmados relatos de como tal filme se transformou num fenômeno de bilheteria, e de como toda a sociedade soteropolitana da época lotava as salas de exibição, numa frenética corrida para assisti-lo. Conduto, para minha aflição, a curiosidade só aumenta e eu jamais tinha acesso ao filme. Eis que na última quarta-feira pude conferir a exibição de uma cópia restaurada em 35mm de Tocaia no Asfalto. Gostei muito! É um daqueles bons filmes, cujas imagens teimam em abandonar a cabeça.
Neste seu filme Roberto Pires nos presenteia com imagens marcantes de uma Salvador de fins dos anos 50 e inicio dos 60. Já percebemos de pronto ser este um dos grandes talentos de Pires - o olhar apurado na escolha das locações e dos ambientes. Meu jovem olhar de 26 anos percorreu maravilhado e atônito aquelas imagens arqueológicas, casarões, praças, ruelas e esquinas - algumas das quais já desaparecidas – sobretudo, como foi bom ver em movimento os tempos áureos da Rua Chile, ver bairros inteiros ainda com ares de sítios rurais; ver o Pelourinho ainda habitado por gente e gingas espontâneas, ver as nossas praias ainda com tons virginais, ainda livres do banho de concreto e do loteamento mercadológico que se seguiria, ver o trânsito ainda não caótico, ver bem explorada a plasticidade cinematográfica da bela Igreja de São Francisco e do monumental Cemitério do Campo Santo.
Mas Roberto Pires não para por aí. Ele faz de Tocaia no Asfalto um filme que, partindo de reflexões e retratos locais, se torna universal e atemporal. Característica essa comum às grandes obras de arte. Tocaia no Asfalto ousa tocar nas delicadas questões políticas e sociais da Bahia e do Brasil daquele tempo, a saber a corrupção crônica inerente à classe política, os interesses públicos e o Bem Comum negligenciados ao descaso em conseqüência de políticos desonestos que se apossam da coisa pública para usufruto próprio, protagonistas de escândalos e CPIs (comissões parlamentares de inquérito), políticos envolvidos em crimes e conspirações. Retrata-se de um lado o coronelismo, o desavergonhado cabresto e do outro suas conseqüências, o povo abandonado em suas necessidades básicas, os pobres largados a sua própria sorte, um sistema prisional falido, cadeias lotadas, perpetuação do poder dos mais ricos ou mais fortes sobre os mais pobres e mais fracos. Atualíssimo este Tocaia no Asfalto. Hoje as vésperas de 2010, havendo exibições pelo Brasil deste filme de 1962, os brasileiros reconhecerão na película antiga um aspecto triste de seu país. Em havendo uma exibição no Congresso Nacional, os nossos políticos da Câmera Federal e do Senado Federal se identificarão sem grande esforço com o personagem do coronel baiano Pinto Borges e seus comparsas.
Essa capacidade de tratar de coisas úteis e tocantes à uma reflexão da sociedade sobre si mesma e sobre a saúde de suas instituições, em minha opinião, é o que faz de Roberto Pires o maior cineasta baiano de todos os tempos. De resto, a sua exímia instrumentalização e faro técnico para a sétima arte é ‘somente’ a bagagem complementar de um grande observador inquieto e inconformado com as mazelas que o circunda. E aqui uma provocação: o cinema baiano atual (temos?) mesmo sendo contemporâneo de artifícios técnicos modernos e de uma escola de produção audiovisual industrial não consegue superar nem se igualar aos grandes feitos do Ciclo Baiano de Cinema, não somente, como dizem, por causa da falta de subsídios estatais. O cinema baiano se afastou do seu público na medida em que se afastou das questões de sua própria cidade, do seu próprio cotidiano. O que temos, para usar expressão já dita por alguém, são “as viúvas de Gláuber”. E que viúvas chatas, monótonas e umbilicais. Nossa produção se reduziu a subjetividade hilária de filmes inúteis como “Esses moços”; a chatice autobiográfica viajante de Edgar Navarro em filmes como “Eu me Lembro”, e dizem que vem mais ainda; e a pornochanchadas mal realizadas e gritadas, como ”Cidade Baixa”, que nem de longe lembra o brilho de produções irresponsáveis como ‘Oh Rebuceteio”. O cinema baiano deixou de ser uma arte democrática e passou a ser uma arte feita por cults para cults. Foi o suicídio mais besta de que já tive noticias.
Voltando à Tocaia no Asfalto o argumento de Rex Shindler é excelente. Conduz maestramente a complexidade dos assuntos a serem abordados, numa fábula cativante. Já o roteiro, do próprio Roberto Pires, também segue essa linha de competência, construindo cenas e diálogos interessantíssimos. Os diálogos, nem mesmo aqueles mantidos entre os personagens da classe rica, são chapadões ou excessivamente formais, com uma linguagem ‘prosaica’ as pessoas dos diferentes núcleos do filme de Roberto parecem pessoas. Claro que ainda verifica-se uma teatralização muito forte no falar, os atores não se identificam psicologicamente com os personagens (pelo menos não ainda a moda stanislavskiana), mas os atores deste filme interpretam com uma simplicidade tão dedicada, que isso se torna uma verdade que leva o espectador a não duvidar em momento algum da pureza do pistoleiro de Agildo Ribeiro nem da bondade da prostituta de Arassary de Oliveira. Aliás, quão feliniana é essa prostituta Ana Paula, com alguns ajustes e caberia dentro de Noites de Cabíria.
O espírito inquieto de Roberto fez dele um grande experimentador de “formas de fazer”. Na montagem de Tocaia no Asfalto nota-se claramente que antes de procurar um estilo fixo, ele estava empenhado numa investigação por possibilidades. Simultaneidade de cenas, seqüências estonteantes, ângulos de câmera ousados para época, planos detalhes inovadores, atestavam o gênio. Alem de tudo isso, tem a música de Remo Usai, que sob as necessidades de Roberto acompanha na medida certa cada sensação do filme, mesmo quando da sua ausência, estabelecendo assim silêncio perturbador como nas cenas do cemitério antes do assassinato e também na cena final da Estação nos momentos onde Ana Paula espera pelo pistoleiro amado e os outros dois homens a seguem. A fotografia de Hélio silva acompanha o acerto do resto do filme com destaque para a cena noturna em que o deputado leva a surra; também para a cena da praia entre o deputado e a filha do coronel; e também para a cena inicial do bar onde o pistoleiro de Agildo mata o homem que lhe acompanha sentado à mesa. Gláuber Rocha foi produtor executivo desse filme. Antonio Pitanga estava estreando na pele de um pistoleiro obscuro e divertido.
Existem projetos para se restaurar outros dois longas de Roberto Pires (‘Redenção’, 1959; primeiro longa baiano) e (‘A Grande Feira’, de 1961). Os fãs do bom cinema, dos verdadeiros homens de cinema e da cidade do Salvador agradecem e esperarão mais uma vez ansiosos por mais um encontro com a obra de Roberto Pires.
Hedre Lavnzk Couto
Filme visto em exibição especial, após restauração, na sala Walter da Silveira, Barris, 27, prédio da biblioteca pública, Salvador, em 16 de dezembro de 2009.
domingo, maio 23
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