domingo, maio 23

‘SEÇÃO ESPECIAL DE JUSTIÇA’, de Costa-Gravas

Em sua fita Seção Especial de Justiça (Section Speciale. Drama, 1974/França, 105 min.), o cineasta grego Constantin Costa-Gravas, inspirado em livro de Hervé Villeré, aborda um controvertido episódio ocorrido na recente história francesa: Durante a II Guerra Mundial, em 1941, os nazistas faziam-se presentes no território e nas esferas políticas francesas, provocando profundo incomodo e descontentamento na população, em especial aos jovens que, movidos pelo patriotismo e pelo sentimento de revolta contra o governo colaboracionista, organizaram grupos terroristas comunistas e articularam atentados contra autoridades alemãs. Bem sucedido um destes atentados, é feito vitima um oficial alemão; irado, o governo nazista exige do governo francês a imediata execução dos autores do crime. Assim, sob forte pressão alemã, e pretendendo a todo custo nomear culpados, os políticos franceses criam um aparato estatal repressor e arbitrário. Mesmo violando os princípios jurídicos da Irretroatividade da Lei Penal, é sancionada uma lei de exceção, retroativa, que estabelece a instalação de Tribunais de Exceção para julgamento de cidadãos envolvidos em atividades comunistas, em tais Tribunais Especiais não caberiam recursos nem possibilidade real de apresentar defesa.
Acontecia que logo a vanguardista França acostumada a anunciar com orgulho e legitimidade o grito da Revolução Francesa de liberté, egalité e fraternité, maculava ali o seu Poder Judiciário, permitindo a instauração e funcionamento dos Tribunais de Exceção, ultrajando a ordem jurídica e ameaçando as garantias individuais dos cidadãos. Estava em risco a tradição democrática dos franceses e seu ideal de justiça.
Hoje, analisando este fato político histórico pelo retrovisor, surge-nos uma série de indagações a respeito de quais os fatores, quais as posturas desempenhadas pelos políticos e pelos operadores do Direito da França de então, que patrocinaram ou facultaram aquele período trevoso do Judiciário e da Sociedade Francesa como um todo. Para iniciar um raciocínio reconstitutivo como este, é primordial não perder de vista que, àquele momento, a própria França já se encontrava sob um regime de Exceção Política imposto pelo domínio dos tentáculos bélicos da expansionista Alemanha de Hitler. Desta maneira tinha-se um Estado e um governo francês subjugados pela política nazista, e se o governo encontrava-se submisso àquela altura, tendo já dois dos seus três poderes constituintes (o Executivo; e o Legislativo) viciados pelo mando alemão, o próximo braço democrático na mira irrefreável dos invasores haveria de ser inevitavelmente o lastro da justiça, o Poder Judiciário.
Torna-se um exercício de penosa abstração projetar como seria possível ao Poder Judiciário, resistir incólume, a manipulação política alemã, diante de um quadro interno onde todos os pilares institucionais do Estado francês agonizavam em estado de sítio e guerra. Num cenário como aquele é de se considerar que todas as decisões passam a ser de cunho político pragmático, aos governantes, acuados, mesmo contando ainda com algumas resistências isoladas de alguns líderes, que pensavam resistir não se sabe como, aos invasores, aparentemente sobravam apenas a missão de evitar um desfecho ainda mais drástico em terras de França. A problemática surge, por conseguinte, quando da tentativa de qualificar do ponto de vista da Ética e dos Princípios Deontológicos a postura dos operadores do direito francês daquele contexto (em especial, a dos magistrados).
É sabido que a função pública judicial aconselha o Jurista da necessidade de seguir Os Princípios Deontológicos da moralidade, da imparcialidade, da independência; e também é sabido pelos mesmos juristas que proceder a mecanismos como o de violar o Principio Jurídico da Irretroatividade da Lei Penal, bem como estabelecer Leis e Tribunais de Exceção pode promover a temível Insegurança Jurídica, ameaçando contundente o pleno exercício do Estado de Direito. No entanto, é no estado de precariedade e adversidade que se conhece o teor do espírito e da índole dos homens. No caso em análise percebemos que houve uma relativização da postura dos magistrados em relação á situação enfrentada: Alguns juízes, mesmo sofrendo algum tipo de represália, mantiveram inabaláveis os seus princípios éticos e morais, negando-se definitivamente a compactuar com atos jurídicos que se mostravam incompatíveis com a plena justiça; todavia, alguns outros não concordavam inteiramente com a situação de exceção jurídica, mas, temendo sanções profissionais, se prostravam omissos e impotentes diante da falência anunciada do sistema; por fim, existiram aqueles magistrados que, infelizmente, como acontece a alguns indivíduos diante da decadência geral, externam sua face corruptível, tirando assim proveito profissional ou material de uma crise danosa ao Bem Comum. Em linhas gerais, verificamos assim, através deste caso retratado por Costa-Gravas, que mesmo numa profissão como a magistratura, onde a conduta e o pleno exercício da Deontologia são tão imprescindíveis à prática do dever profissional, o caráter dos homens ainda se denota falível, sendo, portanto cada índole e subseqüente ação comportamental, resultado de um processo cultural particular do indivíduo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário