domingo, maio 23

Madame bovary

Ela lia compulsivamente os seus romances sentimentalóides. A literatura permitia-lhe viver outras vidas, mais felizes e arriscadas, freqüentar belas e movimentadas cidades, monumentais bailes de máscaras, vestir-se de todos os ornamentos da alta costura, ter prazer, quem sabe amor, e ser Dama! Assim, era Madame Emma Bovary. Jogou-se desesperadamente nas fantasias dos livros, como que pretendendo livrar-se do tédio doméstico, da fraqueza e obtusidade do marido, da inaptidão materna, dos hormônios há muito armazenados, das amarras impiedosas de uma sociedade de aparências, de uma vida claustrofóbica de mulher honesta... Enfim, aí estavam os ingredientes principais daquilo que originaria as cruas vicissitudes daquela que é considerada a adúltera mais famosa da literatura mundial.
Gustave Flaubert publica Madame Bovary em 1857. De pronto o livro suscitou inúmeras polêmicas de aspectos estilístico-estético-literário, uma vez que quebra com os parâmetros vigentes do Romantismo e inaugura o Realismo; mas não resta dúvida que a maior polêmica ocorreu por conta das peculiaridades de seu conteúdo: o livro foi considerado subversivo e Flaubert passou a responder incansavelmente a vários processos na justiça francesa. Acusado de ser destruidor da moral e dos bons costumes da França, em certa audiência, para ver-se livre das perseguições, Flaubert declarou: “Madame Bovary, c'est moi.”, “Madame Bovary, sou eu.”. Teve de abjurar para continuar vivendo e escrevendo. Mas os efeitos e o alcance do livro junto ao público e a posteridade já se faziam irredutíveis. Com seu estilo impessoal e objetivo, Flaubert fez do adultério de Emma Bovary algo sórdido e ao mesmo tempo belo. Algo que é encarado como produto ou oriundo das conseqüências de se viver em meio a uma sociedade burguesa algoz, permeada de hábitos escusos e dominada por uma falsa moral demolidora. E, claro, aí o escritor apresentava também uma ácida crítica à postura e práticas do Clero, da Igreja, nesse contexto mitificador da falsa moral no seio das relações sociais.
Um livro feito de sexo, melancolia, ironia e emoção. Uma protagonista que deixa de lado os padrões da idealizada mulher dos escritores Românticos e se torna insaciável. Inteligente, bela e, acima de tudo insaciável! E, queridas senhoras feministas de plantão, eis aqui talvez o vosso mais antigo protótipo da Emancipação. Tomando eu uma licença poética, Bovary faz uma espécie de premonição literária do Feminismo. Assim, penso, para provar sua tese de que a Sociedade Burguesa e suas organizações e relações sociais imprime uma amarra no verdadeiro Ser das pessoas, castrando-lhes seus desejos, impondo-lhes uma máscara mortuária, que é a hipocrisia, prima do falso moralismo, que impendem o sujeito de ser plenamente feliz, como poderia e deveria ser, é que Flaubert elege como seu material o exemplo da histórica repressão social da figura feminina.
Emma Bovary tem uma vida. Mas essa vida não lhe serve. Porque é uma vida monótona. Ela quer uma vida eletrizante. Emma Bovary tem um marido. Mas este marido não lhe serve. Porque é fraco, débil e não lhe desperta nenhuma admiração. E, por mais que digam não, o único laço que verdadeiramente prende uma mulher a um homem é a admiração. Emma Bovary tem uma casa. Mas ela não quer uma casa com a família e os afazeres pueris que tem. Ela quer o mundo. Ela quer amantes. Ela quer prazer! Tal qual Blanch Du Bois, de Um Bonde Chamado Desejo; e Anna Karenina, de Leon Tolstoi, Emma Bovary queria sonhos e não a realidade. É um personagem metafórico, ‘arquétipo’ da desmedida, por tentar, como cabe a (anti) heroína, tomar as rédeas do próprio destino, o que significa emancipar-se. E por isso hoje é a modelo maior da maioria das correntes feministas. E Emma decidiu assim que pôde, não sem relutar e ter remorsos, se bem que só no início, decidiu viver como nos romances que lia: Teve amante, usou roupas caras, viajou, assistiu a óperas e teatros, teve amante novamente, dormiu em hotéis luxuosos, endividou-se, teve medo e, de tanto viver a vida, esqueceu-se de vivê-la de fato, suicidou-se. Morreu porque era insaciável. Mas tudo leva a crer que para Flaubert, sua personagem foi o que foi, e teve o desfecho trágico que teve, por tratar-se de mais uma vítima da hipocrisia moral da sociedade. É uma bela tese.
Bom, mas eu falei tanto do livro por um propósito nobre...
“Tive a ambição de fazer um filme tal qual Flaubert pudesse conceber, nada mais, nada menos.”, disse certa vez Claude Chabrol, diretor de Madame Bovary, França, 1991, 142 minutos. Chabrol já era um diretor consagrado, um dos mestres do suspense, quando decidiu pela empreitada de levar às telas uma nova versão da Madame de Flaubert. Quem conhece a sua carreira provocativa, sua visão de mundo implacável e seu estilo, percebe que não foi por acaso que o grande cineasta se interessou pela obra do polêmico escritor francês. Se Gustave Flaubert tecia, através de seus livros, uma contundente crítica à sociedade preconceituosa e conservadora de seu tempo, Claude Chabrol fará na mesma medida e o no mesmo tom uma devassa na cortina de ferro dos hipócritas da nossa sociedade contemporânea. Uma vez notando as afinidades que tinha com o discurso e as inovações literárias de Flaubert, sobretudo a visão objetiva e realista da narrativa e da psicologia dos personagens, o diretor realizou um filme que tem ares de um milagre. Digo milagre, porque esta é a sensação visual e atmosférica, experimentada pelo espectador que antes de ir ao cinema lera o livro.
A presente direção de arte é um dos trabalhos mais impressionantes que já vi. Sabe aquela impressão que se tem quando criança, ao ler um livro do qual gostamos muito, aquela impressão de que a qualquer momento poderemos adentrar o livro e explorar aqueles incríveis ambientes e pessoas tão bem descritos pelo autor? Sim, é esse o milagre da direção de arte deste filme. Temos a impressão que num toque de mágica desembarcamos na França do séc. XIX, e nos tornamos vizinhos de Madame Bovary. Numa experiência de pleno êxtase, vamos redescobrindo aqueles lugares antes tão bem descritos por Flaubert, e seja no campo, ou nas cidades, nas ruas ou no interior da casas, em suas mobílias, nos aspectos e fisionomia das personagens, em seus modos de expressão, tudo isso é-nos apresentado e passa diante dos nossos olhos, tão naturalmente, que chegamos a sentir o cheiro das coisas, das pessoas! Chabrol reconstitui e intui o seu material literário de maneira tão honesta, que confere a nós, espectadores, uma intimidade de contemporâneos de Flaubert. Eis o segredo da plenitude do filme. E se acusam Chabrol de fazer uma Madame Bovary naturalista, acho mesmo que é! E daí? Qual o problema? O filme é magistral e, graças a Deus, Naturalista!
Os figurinos concebidos por Corrine Jorry são, além de exuberantes, um verdadeiro trabalho de arqueologia da moda. Um trabalho minucioso, caprichoso e preciso que veste com sinceridade desde os personagens mais humildes como a ama da filha de Bovary, e os pedintes de rua, passando pelo completo rigor das vestimentas masculinas do diferentes homens das cidades, até alcançar quase a perfeição das roupas caríssimas que Emma passa a ostentar. O ponto máximo da beleza dos figurinos se dá no famoso baile de máscaras, onde Emma passa de fato a desejar a vida de fantasias, que tempos depois tentaria viver...
Toda a música, num acerto de coerência, parece ser a externalização do espírito de Emma, com notas que perpassam a languidez, a fragilidade, a irresponsabilidade, a confusão, a sensualidade, a melancolia, o desespero, a loucura, e sempre, em todos os momentos algo parece indicar à premunição do fim trágico.
Todos os atores estão incrivelmente bem. Os franceses têm esse bom hábito da boa interpretação. Este é um filme sustentado na ótima interpretação de TODOS os seus atores e numa magnífica direção de arte. E Claude Chabrol sempre quis isso. Para tanto tem plena convicção de que para o filme ter êxito, precisa concentrar toda a força dramática na aura da protagonista, e, por isso, convoca uma atriz de sua confiança para VIVER o papel: Isabelle Huppert. E Huppert numa perfeita sintonia de trabalho com o seu mestre diretor se sai, ao contrário do que dizem alguns, ela se sai muito bem! Não é uma personagem fácil. Ao contrário, labiríntica! Ainda mais com os exemplos de interpretações de personagens femininas de filmes de época que temos por aí – tomados inocentemente por alguns, como bússolas de exatidão por décadas – por culpa das escolas inglesas e norte americanas. Huppert e Chabrol optam por uma interpretação onde Menos é Mais . A Madame Bovary de Isabelle é uma personagem sem firulas, sem exageros e sem pieguices melodramáticas, antes é uma personagem defendida com limpidez, apresentando transições dramáticas e subjetivas equivalentes, sem dúvida, com a sinceridade verossímil pretendida por Flaubert. Acusaram de fria a performance de Huppert. Bobagem, seu trabalho é correto, convincente.
Ressalta-se ainda, que não obstante desde o séc. XIX o significado da figura e da personalidade de Madame Bovary ter sido projetado sobre diferentes causas e bandeiras, tanto o diretor quanto a atriz preferiram criar uma personagem sem direcioná-la especificamente para a defesa ou promoção de determinada leitura política, sociológica ou classista. Foi um acerto. Pois Madame Bovary é o que é: simplesmente, Madame Bovary! Prefiro vê-la sempre, sob a perspectiva do próprio Flaubert, que me leva a crer que Emma Bovary somos todos nós! Que Bovary é a sociedade em seu todo complexo e contraditório. Se encará-la somente como uma adúltera, uma inconseqüente, egoísta, irresponsável, uma covarde que prefere a morte a enfrentar a vida e os seus problemas, aí não me interesso por Emma Bovary. Mas ainda sinto o seu cheiro...

Hedre Lavnzk Couto.

p/ Carolina

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