domingo, maio 23

Amor sem escalas

Pense nos momentos mais felizes de sua vida... Agora, me responda, você estava sozinho ou acompanhado?... Ou ainda, pense nos instantes tristes, nas situações de depressão, naquela intensa vontade de desaparecer ou no doloroso vazio corrosivo, que te despertou o desejo de se jogar de um arranha-céu... Agora, me confesse, você tinha companhia ou estava isolado? É... É isso mesmo. À cada janela, a sua paisagem. Somos pessoas tão diferentes umas das outras, insatisfeitos, imprevisíveis, exigentes, egoístas, generosos, pacientes, objetivos, frios, intensos, românticos, materialistas, imediatistas ou sonhadores. E é justamente a soma de todos esses aspectos em nós mesmos, juntamente com nossas experiências de vida, positivas ou negativas, quando em contato com tudo que os outros trazem e representam, que nos tornam mais, ou menos individualistas, pouco ou muito adeptos ao hábito de criar raízes...
E esse negócio de criar raízes é um dilema... Porque para alguns aquela imagem de se fixar em algo, em alguma coisa ou em alguém é aterrorizante!... E, não sem razão... Imaginem só: O pobre diabo visualiza-se lá, coitado; colado, ligado, obrigado, adesivado, estagnado, compromissado, eternamente, e aí bate-lhe aquela sensação de desespero diante da, para ele, quase inevitável falta de novidades, desafios e monotonia que lhe espera no futuro, acaso se renda à temível acomodação. Nesta visão, criar raízes é a escravidão, a prisão perpétua, a morte! Para outro tipo de gente, é exatamente o contrário. Há pessoas que sim, precisam estabelecer, RAÍZES! E quanto mais profundas, melhor! Para estas, criar raízes é um objetivo de vida, a concretização da felicidade. Já, desde adolescentes, sonham em chegar aos 23 anos casados, e, para sempre, viu! Planejam ter dois ou três, filhos, isto é, se o salário ajudar. Pensam em morar na mesma cidade toda a vida, se possível, no mesmo bairro, na mesma quadra, indo a mesma padaria. Desejam ter um emprego fixo, onde possam exercer sua profissão, aliás, sua especialidade, porque ser generalista ou se dedicar a atividades diferentes é coisa de desfocado (risos); imaginam os modelos de carro que querem possuir, os móveis e imóveis que almejam comprar, os poucos lugares que desejam conhecer, e pronto: Eis o roteiro de uma vida FELIZ, AMENA e ESTÁVEL.
Mas se existe uma ilusão incontestável, é aquela de que há uma receita certa ou única para se alcançar a Felicidade. Pois acredite, ser feliz ou saudável pode, às vezes, independer da opção do estilo de vida que fazemos. Ora, cada um pode ser feliz a sua maneira. Os de vocação individualista, materialista que planejam toda a vida pensando em investir em diversidade e liberdade, podem perfeitamente encontrar prazer, realização e satisfação no desenvolvimento de suas carreiras, na entrega de seu tempo a uma causa, na construção de uma obra ou simplesmente na dispersão das viagens, ou nos amores a la fast-food. Estes não necessitam ter domicilio fixo, casamento ou filhos para se sentirem bem. Já aqueles, que por sua vez, necessitam compartilhar suas vidas a dois, que, com uma outra pessoa desejam ter um lar, filhos, viver os detalhes dos pequenos momentos, deixar recados de lembranças domésticas ou beijinhos de amor na porta da geladeira, acampar aos fins de semana, tirar fotografias, construir uma vida e uma história colocando as escovas de dentes uma ao ladinho da outra, crescer e aprender bilateralmente com as dificuldades, estes também ai podem encontrar a tão querida Felicidade. E sem dúvida ficarão encantados com aquela mine crônica (O pássaro Pi-i) do grande Mário Quintana que diz: “O pássaro Pi-i só pode viajar aos pares e por isso é o símbolo dos namorados – pois um deles só tem a asa do lado direito e o outro só tem a asa do lado esquerdo: só bem juntinhos é que podem voar!” Às vezes, li Mário. Uma antiga namorada me dizia que ‘quando escolhemos uma pessoa não escolhemos só uma pessoa, escolhemos a casa, o bairro e a cidade onde vamos morar, os amigos e as pessoas com quem vamos conviver...’. Penso diferente. Talvez por isso não demos certo, (confissão póstuma) ela era imediatista e eu faminto pelas coisas do mundo. Para mim, mesmo inconscientemente, desenvolvemos, desde que nascemos um arsenal de desejos; desses, alguns tomam a forma de objetivos, que, para se tornarem conquistados, exigem aí que façamos determinadas opções, originando um certo estilo de levar a vida. Mas ainda assim, chega-se a conclusão de que não é o estilo de vida escolhido por nós que nos torna mais ou menos felizes. A distância fundamental entre o céu e o inferno está no modo como administramos o nosso estilo de vida. Assim mesmo, nem tudo são flores, encontros e desencontros estão constantes em toda a parte. Às vezes as flores murcham, às vezes descobrimos que são de plástico. Contudo, se não esquecermos de quem somos, haverá sempre escalas em jardins...
Vi um filme ontem que me fez pensar nestas baboseiras reais que escrevi.
Amor sem Escalas, "Up in the Air", (EUA, 2010, 109 min) comédia-dramática-romântica, de Jason Reitman, mesmo diretor de Juno; e Obrigado por Fumar é, sem dúvida O MELHOR FILME QUE VI NOS ÚLTIMOS TEMPOS! Baseado em livro de Walter Kirn, com roteiro de Sheldon Turner, Walter Kirn e do próprio Jason Reitman, o filme tem sua força maior concentrada na estória que conta, nas temáticas que aborda, nos belíssimos diálogos de seus personagens, além da marcante atuação do galã George Clooney na pele do protagonista Ryan Bingham. Depois de já visto por milhões de pessoas em todo o mundo, e arrecadar muito dinheiro nas bilheterias, este terceiro longa-metragem do jovem Reitman (ele tem apenas 32 anos) parece decolar agora rumo a uma bela aventura por críticas e reconhecimento positivos. Já faturou de cara quatro prêmios (incluindo o de melhor filme) do National Board of Review, primeiro grande prêmio da temporada do Oscar de Hollywood. Além disso, bateu o record de indicações ao Globo de Ouro 2010, seis ao todo. E já está sendo considerado um fortíssimo candidato ao Oscar de melhor filme em 2010.
Algumas pessoas criticaram esta direção de Jason Reitman por ele persistir, na maioria do tempo, na exploração de suas habituais tomadas curtas, ou ainda ressaltaram uma tal imperdoável não inovação de planos e sei lá mais o que... O que posso testemunhar é que a estória do filme foi muito bem contada. Realmente, os últimos 15 minutos parecem se arrastar um pouco, mas às vezes é o preço de se apresentar bem uma estória. Em ‘O Senhor dos anéis’, Parte III, o filme arrasta-se constrangedoramente na hora final, mas lá existiam efeitos especiais, aí vi poucas pessoas comentando sobre o cansaço que eu experimentei no cinema. Reitman tinha a tarefa de levar ás telas um ‘filme de diálogos’, fez o certo, não inventou chifre na cabeça de cisne; dirigiu bem seus atores, parece que fizeram uma ótima leitura de mesa (costume herdado do bom teatro, quando se quer dominar o que se diz) escolheu bem seus figurinos, definiu bem as locações internas e externas, foi cuidadoso na direção de arte, nos presenteou com uma trilha sonora incrível, fez um belo filme. Com doses boas de sensibilidade, que nos leva a refletir sobre nossas vidas. E com diversão (os espirituosos e picantes sms trocados entre Ryan e a bela Alex; um noivo que, indeciso, some na hora ‘h’ e tem de ser convencido a voltar; aquela festa quente no hotel Hilton; e as demais ironias da vida que são retratadas). O filme é muito divertido! Reitman foi um jovem sábio, quis deixar os efeitos especiais para AVATAR, e abocanhar então a cobiçada estatueta Oscariana de Melhor filme 2010, quem sabe...
Mas finalmente, vamos à fabula do filme:
Ryan Bingham é um executivo especializado em viajar o mundo, sempre demitindo funcionários de empresas que estão promovendo cortes em suas folhas de pagamento. Sabe dos efeitos drásticos que seu trabalho gera nas vidas das pessoas, mas procura não se envolver emocionalmente. Sua vida era uma constante de viagens; quando não estava dentro de um avião, estava demitindo alguém, ou num quarto de hotel, ou num aeroporto, ou ministrando palestras sobre os benefícios profissionais de não se desenvolver relacionamentos afetivos permanentes. Tudo parecia bem e ele estava contente com o estilo de vida que levava, até que... Seu chefe decidiu implantar um método mais econômico para se realizar as demissões: as viagens não seriam mais necessárias (!) e Ryan e seus colegas passariam a demitir as pessoas de todo o mundo à distância, através de um poderoso Sistema de Internet Banda Larga. Então, Ryan parece ver seu mundo cair, pois não acredita na eficácia do novo método, além perceber que sua vida poderá mudar de maneira bem estranha.
O Maior mérito de ‘Amor Sem Escalas’ é essa habilidade mostrada pelo cineasta em tratar de dois temas que, se aparentemente tão diferentes, se entrelaçam, como fica percebido pelo espectador atento. Se Reitman aborda as idiossincrasias de um homem (Ryan) e a tentativa que este faz na ilusão de mudar o seu destino; também discute de maneira maiúscula uma importante questão econômico-financeira: o filme demonstra como pode ser cruel o mercado de trabalho em momentos de crise, ou simplesmente quando por motivos diversos que lhes escapam ao controle, trabalhadores empregados são subitamente demitidos de seus cargos, perdendo seus empregos, investimentos profissionais e emocionais de toda uma vida, perdendo em muitas vezes, sua dignidade e admiração familiar, quando não a própria vida através do suicídio extremoso. E se o momento de ser dispensando como uma peça inútil, já se faz tão desnorteador, imaginem só ser demitido a longa distancia, através de uma vil vídeo conferência, sem contar pelo menos com o eufemismo do ‘calor’ humano de quem realiza a demissão. Situações como estas de praticidade mercadológica ocorrem todos os dias, mas, só quando nos são apresentadas pela lente de aumento do cinema, é que nos apercebemos o quanto são desumanas, hostis. Gosto muito deste filme. E ainda tem a reviravolta do final... Aquela viagem do Ryan a Chicago...
O que são parênteses? O que são fugas? O que é egoísmo? O que é lealdade? O que é vida real? O que é felicidade? Este é um belo filme por isso: porque nos induz a refletir sobre essas coisas que andam por aí... Longe de ter a invejável beleza de George Clooney, eu também tenho cá meus pedaços de Ryan Bingham... Eu também já fiz aquela viagem a Chicago...



Hedre Lavnzk Couto



Filme visto em 27/01/2010.

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