domingo, maio 23

A TVE-Bahia me censurou

Queridas e queridos, este vosso atualmente, saudoso, crítico defunto ou defunto crítico, (parafraseando aqui o pai da linda Capitú) recebeu há poucos dias um tratamento democrático digno dos trevosos anos de chumbo. Ah, senti saudades de Médice diante da truculência de uma diretora da TVE Bahia. Fui massacrado por essa TV. Explico. A Revista Cultural Semanal “soterópolis”, amordaçou-me; cortou-me a língua, roubou-me a liberdade de expressão e comunicação; estuprou minha dignidade. E, por que? Porque eu me atrevi externalizar ponto de vista divergente sobre determinada conjuntura artística, tanto bastou para eu sofrer a mão pesada da inquisidora medieval Sra. Silvana Moura – diretora do referido programa local
Tudo começou quando fui procurado por um de seus produtores:
“Olá Hedre,
Sou Pedro Dell'Orto da produção do programa Soterópolis exibido na TVE. Iremos fazer uma reportagem sobre o aquecimento para o prêmio Braskem. Deusi Magalhães me indicou seu nome junto ao seu blog. Pelo que li, acredito que você acrescentaria muito à reportagem por apresentar uma postura polêmica em relação ao prêmio e a classe artística, além de propor o boicote. Seria uma boa oportunidade para divulgar suas opiniões sobre o prêmio. Caso tenha interesse, me envie um e-mail com seu telefone para que eu possa entrar em contato e agendarmos o dia da entrevista.
Atenciosamente,
Pedro”.
Como acreditando que se tratasse de mais uma possibilidade de debater e acrescentar algum fôlego de provocação e inspiração ao nosso debilitado teatro baiano, eu, infantil, me prontifiquei a dar a tal entrevista, até por consideração a minha leitora Deusy que tinha sugerido minha opinião como pauta. E eis que a famigerada história segue:
“Olá, Pedro. Como vai? Sim, eu tenho interesse pela entrevista. Essa será, sem dúvida, outra oportunidade de troca de idéias muito bem vinda.”
Marcado o dia e o horário, foi gravada a entrevista.
Passado algum tempo, como soube que a entrevista não tinha ido ao ar, indaguei ao mesmo produtor:
“OLá, Pedro. Gostaria de saber quando será exibida a entrevista que concedi a Vocês.grato,”,
Ao que ele me respondeu:
“Oi, Hedre!
A matéria está prevista para ser exibida no dia 02 de abril. Att, Pedro”

Como se passou o dia 02 e a matéria não tinha ido ao ar, no dia 23 de abril fiz um novo contato com o programa Soterópolis:
“Olá! Gostaria de saber se vocês irão ou não exibir a entrevista que fizeram comigo sobre o teatro baiano?”
Ao que o produtor Pedro retornou mentirosamente:
“Olá Hedre,
exibimos no inicio do mês na matéria aquecimento Braskem. abs, Pedro”
Como minha assistente vinha acompanhando assiduamente o programa eu tinha certeza de que se tratava de uma inverdade a afirmação do tal Pedro Dellorto, e por salvaguarda fiz novo contato:
“Pedro, Bom dia!Gostaria de saber, se puder me fazer esse favor, a data precisa da exibição. Pois acompanhei assiduamente os programas posteriores a minha entrevista e não a vi ser exibida em nenhum bloco dos mesmos. Estou suspeitando de que vocês ou esqueceram-se de exibir ou não quiseram, configurando uma censura e uma falta de respeito com minha opinião. e, se for o caso, vou tomar as minhas providencias judiciárias e midiáticas. Espero sinceramente que eu esteja enganado, pois seria muito desagradável, tal fato.
obrigado!”
Detalhe, como eles não tinham levado a matéria ao ar, não tinham como comunicar o dia da exibição (risos). Mas como eles não me respondiam, eu, carrapato de mim mesmo, continuei:
“Peço-lhes encarecidamente que me dêem um retorno: Preciso saber com precisão a data do programa onde foi exibida a matéria que fizeram comigo.
Gostaria de ser tratado com a mesma delicadeza e presteza com que atendi o pedido inicial de vocês para conceder a entrevista. Empenhei meu tempo, horas de uma tarde, tenho o direito de ter essa informação. Espero que tenham a gentileza de me responder o quanto antes.
Desarmado pela perna curta do engodo, o patife Pedro claudica:
“Vou checar e te aviso. Não há motivo para ficar chateado. Respeitamos a opinião de todos, especialmente a sua, pois foi escolhido para dar o depoimento pelo texto que li em seu blog sobre o boicote ao prêmio Braskem. Não se preocupe, se tiver ocorrido algum incidente do gênero, não foi de forma alguma no intuito de censurar sua opinião, mas um possível descuido de quem editou a matéria.
Atenciosamente,Pedro”
E, como não havia mais possibilidade de negar o inegável a CENSURA que me aplicaram, outra vez tentou explicar o inadmissível:
“Caro Hedre,
segue e-mail da Diretora de Produção do Soterópolis sobre o seu caso.
(a diretora, disse): “Caro Pedro,

Não sei porque ele não entrou, acho que foi uma opção do editor. No Soterópolis nós deixamos o editor livre para construir a matéria.
As vezes ele usa sonoras inteiras, outras vezes algumas partes, outras vezes não usa . O jornalista é livre para construir sua reportagem, o que não se pode fazer é alterar os depoimentos das fontes.
Nosso programa sempre abriu espaço para as opiniões das pessoas e vai continuar a fazer isso e nossos jornalistas vão continuar trabalhando com autonomia.”
Estava então clara a falta de seriedade e honestidade desta senhora responsável pela direção do tal programa. Mas eu sou um lord [do dendê], e mesmo diante de sua falta de compostura ainda lhe dediquei açúcar:
“Olá, Silvana!
Sou Hedre Lavnzk Couto, um entusiasta da vida e um otimista que ainda acredita na inteligência e na capacidade humana de respeitar o semelhante, por mais que ele seja ou pense diferente. Acredito em alguns valores fundamentais, alguns desses valores justificam a distinção que fazemos - às vezes, prepotentemente entre nós e os animais irracionais, valores como honra, dignidade, lealdade, hosnestidade, numa palavra caráter e sentimento de respeito para com o outro nos livra da barbarie total e da comparação incômoda com as bestas brutas. Mas Ser humano é difícil, né? Às vezes, não damos conta dessa carga. O tédio nos consome no trânsito, no expediente, em nossa vidinha pequeno bruguesa, na insignificância do nosso lar, na vaidade, na burocracia, numa idéia de relativismo que tudo julgamos poder através dela, justificar nossos erros, falhas ou desvios de índole.
Mas o que quero te dizer, na verdade, Silvana, é que do auge de uma aparente arrogância de minha parte, eu poderia mesmo te dar uma aula acadêmica, técnica, ou mais especificamente, jurídica, sobre liberdade e autonomia de imprensa. Você deturpa tais conceitos consagrados. Eu estava em casa, seu produtor contatou-me convidando-me a conceder uma entrevista sobre um objeto e uma situação da qual estou satisfatoriamente intimo e inteirado (o teatro baiano e o fazer teatral), eu, mesmo com tempo sempre curto, coloquei-me a disposição, lhes concedi horas de uma tarde, dividi com vocês pensamentos e meditações e experiências que acumulei a custo de muito trabalho e sacrifício, e não considero que isso a que vocês denominam de "liberdade e autonomia de imprensa" justifique o descarte de minha entrevista, do material que fizeram comigo, quero dizer, essa aberração que você mentalizou para amenizar sua falta de escrúpulo profissional, não justifica o descarte de meu tempo, de minha presença, de meus pensamentos, eles não podem ser preconceituosamente descartados pelo seu editor ou por você diretora! Não! Penso que esta deslealdade ora desferida por vocês, seja nem aqui nem em Marte apreciável de ser chamada de liberdade ou autonomia jornalística. Opção do editor? Ele que as tenha. Mas me respeite, não delete meu tempo e minha seriedade. Ele é livre para construir a matéria? Não temos dúvida. Mas livre para construí-la dentro de parâmetros éticos, respeitando antes de tudo quem lhe fornece conteúdo para sua pauta, e respeitando por extensão a diversidade de pontos de vistas, o que denota respeito em último caso para o público que tem todo o direito de ver e ter pluralidade. Será que o jornalista é livre para desrespeitar as suas fontes? Você diz: "Nosso programa sempre abriu espaço para as opiniões das pessoas e vai continuar a fazer isso e nossos jornalistas vão continuar trabalhando com autonomia." Mas eu não estou querendo tirar a autonomia dos seus jornalistas, estou pleiteando ser tratado com respeito, e o serei. Aí você pede que eu compreenda o vosso trabalho? Então deveria eu compreender osmoticamente que sua autonomia e que sua equipe podem me desrespeitar? Isso nem meu analista me faria entender ou aceitar.

Vou dividir com você a minha tese: Você e seus editores viram o que eu disse na entrevista e julgaram indigesto para o caráter festivo (superficial) que vocês pretenderam conferir à matéria sobre o prêmio Braskem de teatro, acharam ou forte demais, ou desagradável, ou muito polêmico, numa palavra, desproposital, inadequado para o tom amistoso que vocês queriam para a ocasião... Trocando em miúdos, me CENSURARAM! Tive a oportunidade de ver as outras entrevistas e os outros entrevistados do meio teatral convidados por vocês, todos com palavras muito confortáveis, todos muito felizes e elogiosos para com todos e tudo, eu falei o que achava e fui guilhotinado. Você chama a isso de autonomia e liberdade jornalística. Eu de minha parte chamo de CENSURA! FALTA DE ÉTICA E PROFISSIONALISMO! Eu me sentiria muito infeliz se fosse um jornalista e tivesse essa visão açougueira da autonomia, da liberdade. Isso me lembra aquele antigo jornalismo policial carioca dos anos 40, 50, 60 onde, se deparando com um cadáver ileso de ferimentos no asfalto, o jornalista cravava-lhe um punhal no peito para a foto da capa matinal vender mais no dia seguinte. Então eu me pergunto que tipo de jornalista é você Silvana? Que tipo de jornalismo vocês fazem aí na TVE? Que espírito de porco é esse que os levam a pensar que podem desrespeitar as pessoas? Censura ficou lá trás. longe, longe, e de mim mais longe ainda, brucutu, porque eu adoro uma briga...”
Eu não queria ter que começar a falar tão cedo sobre a verdade da TV da bahiana, mas assim serei forçado a deitar-lhes o verbo e sentar-lhes o dedo... até queridos!

Meu caro Eduardo Oliva,

Meu caro Eduardo Oliva, é com prazer que adentro às leituras do seu Blog. E não posso deixar de congratulá-lo pela idéia e pelo empreendimento, que, tenho certeza, com sua dedicação e engenhosidade habituais, não tardará a despertar o acopanhamento de muitos. Acabei de ler seu texto e pra começo de conversa já fiz uma notável descoberta pessoal: também eu fui um Jim Graham. E, embora não tenha sido abandonado em Hong Kong, sobrevivi há várias guerras, o que me fez envelhecer desastrosamente rápido... (Segue)-

A proposta que você traz neste espaço de cara já me interessa muito. É animadora a possibilidade de contar com um lugar virtual, onde os amantes e curiosos do cinema poderão se debruçar, sobretudo, na observação e debate daquelas questões e opções técnicas, relacionadas à missão sempre instigante, que é aquela de o cineasta através da 'fotografia' em movimento, guiar, surpreender e maravilhar o olhar humano.

ORAÇÃO A marfuz

Oh meu querido e venerado São Marfuz,
Vós que sois o rei dos reis, o maior dos maiores,
O justo dos justos, o sereno dos serenos, a luz das ribaltas, e, claro,
O diretor dos diretores
Vós que estais em todas as partes, palcos, comissões e corações
Protagonista esplêndido desta nossa arte fugaz e vagabunda
Rogo-vos, oh senhor magnânimo dos anéis e dos editais
Derramai um pouco de sua infinita luz e clarividência
Sobre nossas cabeças ocas e sedentas de um lugar ao elipsoidal!

Tu que enxergas onde os olhos comuns não enxergam,
Que sentes aquilo que os corações tropicanos médios não sentem,
Que sabes o que os livros de stanislavzky não dizem,
Que ensinas os caminhos das pedras,
Que entregas o leite,
Que repartes o pão,
Que recortas os papéis,
Que freqüentas as últimas sessões,
Que sorris de soslaio,
E que fazes os Policarpos...

Oh, Marfuz, deus grego,
Minuta de Eurípedes e Aristófanes
Inspiração de Falabela, Thomas e vilela
das comédias e tragédias
oh, Marfuz, nosso mestre,
refrigerai-nos, com a vossa graça,
Amém!

AVATAR

2154 D C. Uma grande batalha. No cenário, Montanhas flutuantes, plantas colossais, gigantescas árvores luminosas, cascatas d’água de infinita proporção, imensos répteis voadores que congestionam os céus, mamíferos improváveis e ferozes, algas voadoras que curam feridas, humanos que controlam, através da consciência, corpos criados artificialmente, e, tudo o que a mais prodigiosa das imaginações jamais tinha ousado conceber, esta é a longínqua Lua Pandora, onde vivia pacificamente o Povo Na’Vi, humanóides primitivos de três metros de altura com caudas, ossos naturalmente reforçados com fibra de carbono e pêlo bioluminescente, adoradores da deusa Eywa, totalmente conectados a natureza até sofrer a invasão de mercenários humanos, que pretendem extingui-los para explorar suas reservas do precioso minério Unobtanium.
Idealizado, escrito e dirigido por James Cameron, mesmo diretor de filmes como O Segredo do Abismo; Aliens – O Resgate; O Exterminador do Futuro; O Exterminador do Futuro 2 – O Julgamento Final ; e Titanic; AVATAR prometia ser um filme desbravador dos limites dos efeitos especiais. Revolução das câmeras 3 D, das lentes e de toda a computação gráfica. Exigência categórica do diretor, com o intuito de conferir o máximo de realidade à sua imaginação, era de que o filme fosse todo produzido em 3D. Cameron previa que somente assim seria possível proporcionar ao espectador uma experiência de total imersão no filme. E esse era meu medo.
Pensei: ‘lá vem mais um desses filmes notadamente piegas onde os computadores fazem grandes barulhos por nada e os bons diálogos e interpretações tiram férias’. Recentemente tivemos uma ótima idéia perdida em meio a um roteiro manco e uma execução cinematográfica desastrada. Refiro-me ao filme ‘2012’, que afora algumas imagens fortes e perturbadoras de um apocalipse presumível, nada mais provocou na maioria do público do que embrulho no estomago e alguns risinhos diante de um divertido casal separado e um russo estabanado. ‘2012’ foi muito alvoroço gráfico e pouca sensibilidade artística para explorar um tema controvertido da atual pauta mundial. Assim relutei bastante em conferi AVATAR. Mas fui! Fui ver mais um filme de um ex jovem estudante de física que, aos 23 anos, em início dos anos 70, ao entrar no cinema e ver o Episódio IV de Star Wars, decidiu estudar sobre ficção científica e câmeras, mudando o rumo de sua vida e fazendo filmes campeões de bilheteria e crítica.
AVATAR é o filme mais caro da história do cinema. Custou US$ 400 milhões. E até o dia 03 de janeiro de 2010 já tinha faturado US$1,02 bilhão, se tornando a quarta maior bilheteria de todos os tempos. MAS VALE CADA CENTAVO. RECOMENDO. E digo isso porque neste novo trabalho de Cameron a computação gráfica, a mais apurada tecnologia 3D surge como uma linguagem, um meio imprescindivel de tornar possivel a projeção da metáfora pensada pelo cineasta. Em AVATAR o uso da mais avançada tecnologia não é um fim em si mesmo. Não é exibicionismo gratuito. E sim uma necessidade.
E qual seria então a grande metáfora do diretor? James Cameron nos projeta num contexto de 114 anos a frente dessa nossa época. Onde, segundo a fábula, os humanos já destruiram todas as pontencialidades e capacidades naturais e vitais da Terra, transformando-a num planeta morimbundo, e agora veem-se na necessidade de corromperem as riquezas energéticas de outros sistemas. De cara já é nada animadora essa perspectiva de que em 100 anos o homem já teria comprometido irremediavelvente as condições de sobrevivência terrena. Outro ponto assustador é o de que não obstante à experiência de já terem perdido o próprio habitat original, por conta de seu instinto predador e autodestrutivo, os humanos não teriam se conscientizado dos erros, aplicando aos novos planetas encontrados os mesmos métodos desastrosos de convivência belijerante e exploração imprudente.
Mas ainda se pode pensar o filme sobre outro ângulo. Ao criar Pandora, um mundo macroscopicamente belo, virgem e plural, dotado de seres puros e pacificos e que convivem em total harmonia entre si e com inteira conexão com os elementos da natureza, o cineasta coloca uma espécie de lente de aumento na exuberância e na fragilidade de nosso próprio planeta Terra, como a nos recordar e a nos alertar de que ainda há tempo de cuidar de nossa casa, e mantê-la bela, rica e viva! O povo de Na’Vi, os seres primitivos de Pandora, podem ser vistos como aquele lado do homem que ainda tem consciência da necessidade da preservação. Portanto, a Guerra entre os humanoides Na’Vi e os homens pode ser interpretada como o embate existente entre os dois lados do Ser humano, respectivamente, a consciência da necessidade da conservação do planeta e o nosso instinto auto destrutivo e inconsequente.
Relevante então é notar quão adequadas se tornam as discussões suscitadas pelo filme, se tomado por essa visão. Num momento onde muito se discute a saúde e conservação do planeta. Onde ocorrem incansáveis debates entre os que acreditam e entre aqueles que negam o aquecimento global acima dos níveis considerados normais, em conseqüência da emissão de resíduos tóxicos na atmosfera. O fato é que o homem nos últimos dois séculos e meio vem degradando viciosamente o planeta e isso certamente nos tem trazido prejuízos visíveis. E mais cedo ou mais tarde, se estes atos irresponsáveis não cessarem, o planeta pode resolver acertar contas com os seus parasitas, tal qual nas últimas cenas de AVATAR a natureza se revolta e aniquila o seres humanos opressores e arrogantes que, iludidos com sua tecnologia, julgavam-se inabaláveis.
A imagem do filme que mais me marcou foi a da queda da grande árvore. Aquelas dezenas de helicópteros enlouquecidos metralhando a velha árvore até a sua queda é lastimável e forte. Simboliza muito mais do que as mortes de milhares de árvores diariamente na Amazônia. Aquela árvore, imóvel, sendo raivosamente perfurada como se faz na guerra a um inimigo atroz, quando tomba, é como se tombasse parte significativa da própria humanidade, como se existisse uma árvore caindo dentro de nós. Dentro de mim mesmo.

Hedre Lavnzk Couto

O épico do sapo que na preguiça de ser príncipe, transformou-se em presidente

Lula – o filho do Brasil. Vi esse filme de Fábio Barreto, adaptado de livro homônimo, o qual não li. Entrei em crise. Depressão, talvez. Tristeza profunda, certamente. Queria antes ser uma imensa avestruz, encontrar rapidamente um buraco no chão e fugir dessa tarefa. Mas vou “teimar”! Peço a Deus uma migalha de eufemismo e seguirei em frente. ‘Nunca antes na história desse país’ um filme foi realizado com um propósito tão ultrajante.
Vi estarrecido. E, diante do que vi na tela, duvidei de minha própria sanidade mental. E quando isso acontece a um Ser humano, o dano que lhe causaram é grave. Brasil! Brasil! ‘Que país é este?’ Que asilo de loucos é este que estão te tornando? Viva a liberdade de expressão e comunicação! Viva a liberdade de os cineastas produzirem os filmes sobre os mais controvertidos temas que lhes aparecerem à cabeça! Viva a liberdade que protege a possibilidade de os mais diversos políticos terem suas trajetórias e vidas narradas nas mais variadas telas! Mas mil ‘vivas’ também para aquelas pessoas que, mesmo diante da apatia geral, ainda conseguem esboçar indignação, diante das falcatruas mais nefastamente ornamentadas de singeleza.
Não me oponho que Lula ou qualquer outro político seja homenageado através de suas vidas relidas no cinema ou na televisão, muito menos à possibilidade de Fábio Barreto ou qualquer outro diretor explorar a recriação de tais personagens nos meios de comunicação de massa. Agora, me respondam só uma coisa: esse épico sobre Lula, um presidente da República que possui 83 pontos positivos nas pesquisas de popularidade, tinha que estrear exatamente num ano de eleição presidencial, onde este mesmo presidente tenta transferir toda essa popularidade a uma candidata a presidência inteiramente desconhecida? Tal filme não poderia ter estreado dois anos antes? Ou porque não esperar o término do segundo mandato do presidente para homenageá-lo? Com certeza os produtores de Fábio Barreto me diriam que não é bem assim, que em cinema tudo é programado com anos de antecedência, que tudo depende da captação; dos interesses dos patrocinadores; da disponibilidade dos atores e demais profissionais; dos acertos agendados com os exibidores; que a concorrência com os filmes estrangeiros é dura. Palavras, palavras, palavras... Todas a serviço da imoralidade! Qual seria mesmo os interesses desse número record de grandes empresas patrocinando esse filme? Um doce regalo ao bom presidente? O próprio Lula tinha obrigação moral de ter pedido a Fábio Barreto que este filme não tivesse estréia em 2010. E isso não seria censura. Seria bom senso. Mas com certeza, também da existência desse filme o presidente não sabia. É ‘legal’ a estréia desse filme neste ano de 2010, mas é imoral! O nosso já ferido Direito Eleitoral mais uma vez “comeu mosca”.
Lula – o filho do Brasil, não “é a saga de uma família Silva igual à odisséia de tantas outras famílias Silva deste Brasil”, trata-se antes, da mais desavergonhada Propaganda Partidária Política Eleitoral da qual os eleitores deste país já foram vítimas. O Brasil de hoje vem acumulando semelhanças preocupantes com os países que experimentaram os regimes ditatoriais Fascistas. Veja o caso, por exemplo, do que aconteceu na ex URSS, onde os também, Grandes Pais, respectivamente, Lenine e Stálin submeteram ou tentaram submeter, todas as artes e artistas russos aos comandos propagandísticos do PARTIDÃO. Literatura, música, artes plásticas, arquitetura, teatro, cinema todas essas artes e seus autores foram coagidos a existirem somente enquanto meios de manipulação das massas. Lá, literatos cineastas e homens de teatro, mesmo os não simpatizantes, foram obrigados a se engajarem nas diretrizes do Partido, sob risco de pena capital. Mas felizmente, lá na Rússia, haviam artistas que não se vendiam, e nem se intimidaram com aqueles duros tempos: Vsevolod Meyerhold, grande homem de teatro, recusou-se a fazer de suas peças instrumentos de propaganda política do Estado e foi assassinado. Sergei Eisenstein, maior cineasta russo, solicitado a se tornar o realizador oficial dos épicos propagandísticos do Partido, recusou a tarefa e teve sua carreira destruída, sendo execrado.
Tudo começa assim. Uma tempestade para que aconteça, antes necessita de calmaria para que se formem as grandes e negras nuvens. O populismo é uma praga que volta a pairar lentamente suas sombras tentaculares sobre a América do Sul. O populismo, manto protetor das mais vis ditaduras, se alimenta da simplicidade, da crendice e da falta de senso crítico do povo, que ora não tem tempo para pensar sobre o verdadeiro sentido de um filme que vê nos cinemas, porque se encontra mais preocupado em correr, porque deve trabalhar, mecanicamente, porque deve consumir e consumir irracionalmente aqueles produtos que alimentam os lucros astronômicos daquelas mesmas empresas que patrocinaram (desinteressadamente?) o filme do Lula.
Já no primeiro final de semana em cartaz nos cinemas do Brasil, o filme do presidente já levou às salas mais de 220 mil espectadores. É a curiosidade do povo, já picado pelo ferrão do populismo implacável, para ver o filme não do filho, mas do Pai do Brasil. Nos tempos onde o Brasil flertava abertamente com o Fascismo, em dia de aniversário de Getúlio Vargas era feriado Nacional. Em cada canto onde lhe interessava, Getúlio nomeava seus interventores. Seu poder popular era de tal espécie que ele era capaz de pegar pela mão um desconhecido e fazê-lo um fenômeno das urnas. Isso não nos lembra algo? Só que o fim de Vargas foi trágico. Os anos que se seguiram para o país até década de oitenta em função dos resquícios de sua ditadura, também. Estou preocupado. Mas os homens de Bem desse país não podem esconder suas cabeças dentro de buracos, feito avestruzes. É preciso combater o perigo de cabeça erguida e serena. Eu daqui faço minha parte. Saí do cinema com duas certezas: a primeira é a de que este filme influenciará decisivamente na quantidade de eleitores que, fieis ao herói Lula, não hesitarão em transferir sua confiança a candidata escolhida pelo grande Pai – que sabe o que é o melhor para a Pátria. A outra certeza, é a de que se Dilma for eleita presidente deste país, o fascismo pousará aqui a galopes largos.
Quanto a apreciação técnica do filme, me recuso a fazê-la com esmero. Na verdade é impossível para mim fazê-la. Pois não considero esse filme um objeto de arte. Mas finalizo dizendo que, para nossa sorte, nem mesmo um épico de massas o Fábio Barreto soube fazer com perspicácia. Seu filme não consegue sair do tom de novela das oito. Parece uma daquelas cansativas obras de Glória Perez. É inteiramente insosso e sem a mínima emoção até a parte onde o personagem Lula assume a presidência do sindicato. Daí então tenta algo, mas já é tarde, sobem os créditos finais acompanhados de várias fotografias. Seus enquadramentos são péssimos. Seus atores estão apáticos. O protagonista que faz o Lula na Fase adulta escorrega mais no personagem do que quiabo na panela. Glória Pires faz o filme desabar toda vez que abre a boca. Alias por que Glórias Pires neste filme se a própria ‘estrela’ do Lula já assegura milhões de espectadores? A intérprete de Dona Marisa é a única atriz que se salva. ‘Mas nunca antes na história desse país’ Cléo Pires esteve tão linda.


Hedre Lavnzk Couto

Filme visto em 04 de janeiro de 2010.

Amor sem escalas

Pense nos momentos mais felizes de sua vida... Agora, me responda, você estava sozinho ou acompanhado?... Ou ainda, pense nos instantes tristes, nas situações de depressão, naquela intensa vontade de desaparecer ou no doloroso vazio corrosivo, que te despertou o desejo de se jogar de um arranha-céu... Agora, me confesse, você tinha companhia ou estava isolado? É... É isso mesmo. À cada janela, a sua paisagem. Somos pessoas tão diferentes umas das outras, insatisfeitos, imprevisíveis, exigentes, egoístas, generosos, pacientes, objetivos, frios, intensos, românticos, materialistas, imediatistas ou sonhadores. E é justamente a soma de todos esses aspectos em nós mesmos, juntamente com nossas experiências de vida, positivas ou negativas, quando em contato com tudo que os outros trazem e representam, que nos tornam mais, ou menos individualistas, pouco ou muito adeptos ao hábito de criar raízes...
E esse negócio de criar raízes é um dilema... Porque para alguns aquela imagem de se fixar em algo, em alguma coisa ou em alguém é aterrorizante!... E, não sem razão... Imaginem só: O pobre diabo visualiza-se lá, coitado; colado, ligado, obrigado, adesivado, estagnado, compromissado, eternamente, e aí bate-lhe aquela sensação de desespero diante da, para ele, quase inevitável falta de novidades, desafios e monotonia que lhe espera no futuro, acaso se renda à temível acomodação. Nesta visão, criar raízes é a escravidão, a prisão perpétua, a morte! Para outro tipo de gente, é exatamente o contrário. Há pessoas que sim, precisam estabelecer, RAÍZES! E quanto mais profundas, melhor! Para estas, criar raízes é um objetivo de vida, a concretização da felicidade. Já, desde adolescentes, sonham em chegar aos 23 anos casados, e, para sempre, viu! Planejam ter dois ou três, filhos, isto é, se o salário ajudar. Pensam em morar na mesma cidade toda a vida, se possível, no mesmo bairro, na mesma quadra, indo a mesma padaria. Desejam ter um emprego fixo, onde possam exercer sua profissão, aliás, sua especialidade, porque ser generalista ou se dedicar a atividades diferentes é coisa de desfocado (risos); imaginam os modelos de carro que querem possuir, os móveis e imóveis que almejam comprar, os poucos lugares que desejam conhecer, e pronto: Eis o roteiro de uma vida FELIZ, AMENA e ESTÁVEL.
Mas se existe uma ilusão incontestável, é aquela de que há uma receita certa ou única para se alcançar a Felicidade. Pois acredite, ser feliz ou saudável pode, às vezes, independer da opção do estilo de vida que fazemos. Ora, cada um pode ser feliz a sua maneira. Os de vocação individualista, materialista que planejam toda a vida pensando em investir em diversidade e liberdade, podem perfeitamente encontrar prazer, realização e satisfação no desenvolvimento de suas carreiras, na entrega de seu tempo a uma causa, na construção de uma obra ou simplesmente na dispersão das viagens, ou nos amores a la fast-food. Estes não necessitam ter domicilio fixo, casamento ou filhos para se sentirem bem. Já aqueles, que por sua vez, necessitam compartilhar suas vidas a dois, que, com uma outra pessoa desejam ter um lar, filhos, viver os detalhes dos pequenos momentos, deixar recados de lembranças domésticas ou beijinhos de amor na porta da geladeira, acampar aos fins de semana, tirar fotografias, construir uma vida e uma história colocando as escovas de dentes uma ao ladinho da outra, crescer e aprender bilateralmente com as dificuldades, estes também ai podem encontrar a tão querida Felicidade. E sem dúvida ficarão encantados com aquela mine crônica (O pássaro Pi-i) do grande Mário Quintana que diz: “O pássaro Pi-i só pode viajar aos pares e por isso é o símbolo dos namorados – pois um deles só tem a asa do lado direito e o outro só tem a asa do lado esquerdo: só bem juntinhos é que podem voar!” Às vezes, li Mário. Uma antiga namorada me dizia que ‘quando escolhemos uma pessoa não escolhemos só uma pessoa, escolhemos a casa, o bairro e a cidade onde vamos morar, os amigos e as pessoas com quem vamos conviver...’. Penso diferente. Talvez por isso não demos certo, (confissão póstuma) ela era imediatista e eu faminto pelas coisas do mundo. Para mim, mesmo inconscientemente, desenvolvemos, desde que nascemos um arsenal de desejos; desses, alguns tomam a forma de objetivos, que, para se tornarem conquistados, exigem aí que façamos determinadas opções, originando um certo estilo de levar a vida. Mas ainda assim, chega-se a conclusão de que não é o estilo de vida escolhido por nós que nos torna mais ou menos felizes. A distância fundamental entre o céu e o inferno está no modo como administramos o nosso estilo de vida. Assim mesmo, nem tudo são flores, encontros e desencontros estão constantes em toda a parte. Às vezes as flores murcham, às vezes descobrimos que são de plástico. Contudo, se não esquecermos de quem somos, haverá sempre escalas em jardins...
Vi um filme ontem que me fez pensar nestas baboseiras reais que escrevi.
Amor sem Escalas, "Up in the Air", (EUA, 2010, 109 min) comédia-dramática-romântica, de Jason Reitman, mesmo diretor de Juno; e Obrigado por Fumar é, sem dúvida O MELHOR FILME QUE VI NOS ÚLTIMOS TEMPOS! Baseado em livro de Walter Kirn, com roteiro de Sheldon Turner, Walter Kirn e do próprio Jason Reitman, o filme tem sua força maior concentrada na estória que conta, nas temáticas que aborda, nos belíssimos diálogos de seus personagens, além da marcante atuação do galã George Clooney na pele do protagonista Ryan Bingham. Depois de já visto por milhões de pessoas em todo o mundo, e arrecadar muito dinheiro nas bilheterias, este terceiro longa-metragem do jovem Reitman (ele tem apenas 32 anos) parece decolar agora rumo a uma bela aventura por críticas e reconhecimento positivos. Já faturou de cara quatro prêmios (incluindo o de melhor filme) do National Board of Review, primeiro grande prêmio da temporada do Oscar de Hollywood. Além disso, bateu o record de indicações ao Globo de Ouro 2010, seis ao todo. E já está sendo considerado um fortíssimo candidato ao Oscar de melhor filme em 2010.
Algumas pessoas criticaram esta direção de Jason Reitman por ele persistir, na maioria do tempo, na exploração de suas habituais tomadas curtas, ou ainda ressaltaram uma tal imperdoável não inovação de planos e sei lá mais o que... O que posso testemunhar é que a estória do filme foi muito bem contada. Realmente, os últimos 15 minutos parecem se arrastar um pouco, mas às vezes é o preço de se apresentar bem uma estória. Em ‘O Senhor dos anéis’, Parte III, o filme arrasta-se constrangedoramente na hora final, mas lá existiam efeitos especiais, aí vi poucas pessoas comentando sobre o cansaço que eu experimentei no cinema. Reitman tinha a tarefa de levar ás telas um ‘filme de diálogos’, fez o certo, não inventou chifre na cabeça de cisne; dirigiu bem seus atores, parece que fizeram uma ótima leitura de mesa (costume herdado do bom teatro, quando se quer dominar o que se diz) escolheu bem seus figurinos, definiu bem as locações internas e externas, foi cuidadoso na direção de arte, nos presenteou com uma trilha sonora incrível, fez um belo filme. Com doses boas de sensibilidade, que nos leva a refletir sobre nossas vidas. E com diversão (os espirituosos e picantes sms trocados entre Ryan e a bela Alex; um noivo que, indeciso, some na hora ‘h’ e tem de ser convencido a voltar; aquela festa quente no hotel Hilton; e as demais ironias da vida que são retratadas). O filme é muito divertido! Reitman foi um jovem sábio, quis deixar os efeitos especiais para AVATAR, e abocanhar então a cobiçada estatueta Oscariana de Melhor filme 2010, quem sabe...
Mas finalmente, vamos à fabula do filme:
Ryan Bingham é um executivo especializado em viajar o mundo, sempre demitindo funcionários de empresas que estão promovendo cortes em suas folhas de pagamento. Sabe dos efeitos drásticos que seu trabalho gera nas vidas das pessoas, mas procura não se envolver emocionalmente. Sua vida era uma constante de viagens; quando não estava dentro de um avião, estava demitindo alguém, ou num quarto de hotel, ou num aeroporto, ou ministrando palestras sobre os benefícios profissionais de não se desenvolver relacionamentos afetivos permanentes. Tudo parecia bem e ele estava contente com o estilo de vida que levava, até que... Seu chefe decidiu implantar um método mais econômico para se realizar as demissões: as viagens não seriam mais necessárias (!) e Ryan e seus colegas passariam a demitir as pessoas de todo o mundo à distância, através de um poderoso Sistema de Internet Banda Larga. Então, Ryan parece ver seu mundo cair, pois não acredita na eficácia do novo método, além perceber que sua vida poderá mudar de maneira bem estranha.
O Maior mérito de ‘Amor Sem Escalas’ é essa habilidade mostrada pelo cineasta em tratar de dois temas que, se aparentemente tão diferentes, se entrelaçam, como fica percebido pelo espectador atento. Se Reitman aborda as idiossincrasias de um homem (Ryan) e a tentativa que este faz na ilusão de mudar o seu destino; também discute de maneira maiúscula uma importante questão econômico-financeira: o filme demonstra como pode ser cruel o mercado de trabalho em momentos de crise, ou simplesmente quando por motivos diversos que lhes escapam ao controle, trabalhadores empregados são subitamente demitidos de seus cargos, perdendo seus empregos, investimentos profissionais e emocionais de toda uma vida, perdendo em muitas vezes, sua dignidade e admiração familiar, quando não a própria vida através do suicídio extremoso. E se o momento de ser dispensando como uma peça inútil, já se faz tão desnorteador, imaginem só ser demitido a longa distancia, através de uma vil vídeo conferência, sem contar pelo menos com o eufemismo do ‘calor’ humano de quem realiza a demissão. Situações como estas de praticidade mercadológica ocorrem todos os dias, mas, só quando nos são apresentadas pela lente de aumento do cinema, é que nos apercebemos o quanto são desumanas, hostis. Gosto muito deste filme. E ainda tem a reviravolta do final... Aquela viagem do Ryan a Chicago...
O que são parênteses? O que são fugas? O que é egoísmo? O que é lealdade? O que é vida real? O que é felicidade? Este é um belo filme por isso: porque nos induz a refletir sobre essas coisas que andam por aí... Longe de ter a invejável beleza de George Clooney, eu também tenho cá meus pedaços de Ryan Bingham... Eu também já fiz aquela viagem a Chicago...



Hedre Lavnzk Couto



Filme visto em 27/01/2010.

Madame bovary

Ela lia compulsivamente os seus romances sentimentalóides. A literatura permitia-lhe viver outras vidas, mais felizes e arriscadas, freqüentar belas e movimentadas cidades, monumentais bailes de máscaras, vestir-se de todos os ornamentos da alta costura, ter prazer, quem sabe amor, e ser Dama! Assim, era Madame Emma Bovary. Jogou-se desesperadamente nas fantasias dos livros, como que pretendendo livrar-se do tédio doméstico, da fraqueza e obtusidade do marido, da inaptidão materna, dos hormônios há muito armazenados, das amarras impiedosas de uma sociedade de aparências, de uma vida claustrofóbica de mulher honesta... Enfim, aí estavam os ingredientes principais daquilo que originaria as cruas vicissitudes daquela que é considerada a adúltera mais famosa da literatura mundial.
Gustave Flaubert publica Madame Bovary em 1857. De pronto o livro suscitou inúmeras polêmicas de aspectos estilístico-estético-literário, uma vez que quebra com os parâmetros vigentes do Romantismo e inaugura o Realismo; mas não resta dúvida que a maior polêmica ocorreu por conta das peculiaridades de seu conteúdo: o livro foi considerado subversivo e Flaubert passou a responder incansavelmente a vários processos na justiça francesa. Acusado de ser destruidor da moral e dos bons costumes da França, em certa audiência, para ver-se livre das perseguições, Flaubert declarou: “Madame Bovary, c'est moi.”, “Madame Bovary, sou eu.”. Teve de abjurar para continuar vivendo e escrevendo. Mas os efeitos e o alcance do livro junto ao público e a posteridade já se faziam irredutíveis. Com seu estilo impessoal e objetivo, Flaubert fez do adultério de Emma Bovary algo sórdido e ao mesmo tempo belo. Algo que é encarado como produto ou oriundo das conseqüências de se viver em meio a uma sociedade burguesa algoz, permeada de hábitos escusos e dominada por uma falsa moral demolidora. E, claro, aí o escritor apresentava também uma ácida crítica à postura e práticas do Clero, da Igreja, nesse contexto mitificador da falsa moral no seio das relações sociais.
Um livro feito de sexo, melancolia, ironia e emoção. Uma protagonista que deixa de lado os padrões da idealizada mulher dos escritores Românticos e se torna insaciável. Inteligente, bela e, acima de tudo insaciável! E, queridas senhoras feministas de plantão, eis aqui talvez o vosso mais antigo protótipo da Emancipação. Tomando eu uma licença poética, Bovary faz uma espécie de premonição literária do Feminismo. Assim, penso, para provar sua tese de que a Sociedade Burguesa e suas organizações e relações sociais imprime uma amarra no verdadeiro Ser das pessoas, castrando-lhes seus desejos, impondo-lhes uma máscara mortuária, que é a hipocrisia, prima do falso moralismo, que impendem o sujeito de ser plenamente feliz, como poderia e deveria ser, é que Flaubert elege como seu material o exemplo da histórica repressão social da figura feminina.
Emma Bovary tem uma vida. Mas essa vida não lhe serve. Porque é uma vida monótona. Ela quer uma vida eletrizante. Emma Bovary tem um marido. Mas este marido não lhe serve. Porque é fraco, débil e não lhe desperta nenhuma admiração. E, por mais que digam não, o único laço que verdadeiramente prende uma mulher a um homem é a admiração. Emma Bovary tem uma casa. Mas ela não quer uma casa com a família e os afazeres pueris que tem. Ela quer o mundo. Ela quer amantes. Ela quer prazer! Tal qual Blanch Du Bois, de Um Bonde Chamado Desejo; e Anna Karenina, de Leon Tolstoi, Emma Bovary queria sonhos e não a realidade. É um personagem metafórico, ‘arquétipo’ da desmedida, por tentar, como cabe a (anti) heroína, tomar as rédeas do próprio destino, o que significa emancipar-se. E por isso hoje é a modelo maior da maioria das correntes feministas. E Emma decidiu assim que pôde, não sem relutar e ter remorsos, se bem que só no início, decidiu viver como nos romances que lia: Teve amante, usou roupas caras, viajou, assistiu a óperas e teatros, teve amante novamente, dormiu em hotéis luxuosos, endividou-se, teve medo e, de tanto viver a vida, esqueceu-se de vivê-la de fato, suicidou-se. Morreu porque era insaciável. Mas tudo leva a crer que para Flaubert, sua personagem foi o que foi, e teve o desfecho trágico que teve, por tratar-se de mais uma vítima da hipocrisia moral da sociedade. É uma bela tese.
Bom, mas eu falei tanto do livro por um propósito nobre...
“Tive a ambição de fazer um filme tal qual Flaubert pudesse conceber, nada mais, nada menos.”, disse certa vez Claude Chabrol, diretor de Madame Bovary, França, 1991, 142 minutos. Chabrol já era um diretor consagrado, um dos mestres do suspense, quando decidiu pela empreitada de levar às telas uma nova versão da Madame de Flaubert. Quem conhece a sua carreira provocativa, sua visão de mundo implacável e seu estilo, percebe que não foi por acaso que o grande cineasta se interessou pela obra do polêmico escritor francês. Se Gustave Flaubert tecia, através de seus livros, uma contundente crítica à sociedade preconceituosa e conservadora de seu tempo, Claude Chabrol fará na mesma medida e o no mesmo tom uma devassa na cortina de ferro dos hipócritas da nossa sociedade contemporânea. Uma vez notando as afinidades que tinha com o discurso e as inovações literárias de Flaubert, sobretudo a visão objetiva e realista da narrativa e da psicologia dos personagens, o diretor realizou um filme que tem ares de um milagre. Digo milagre, porque esta é a sensação visual e atmosférica, experimentada pelo espectador que antes de ir ao cinema lera o livro.
A presente direção de arte é um dos trabalhos mais impressionantes que já vi. Sabe aquela impressão que se tem quando criança, ao ler um livro do qual gostamos muito, aquela impressão de que a qualquer momento poderemos adentrar o livro e explorar aqueles incríveis ambientes e pessoas tão bem descritos pelo autor? Sim, é esse o milagre da direção de arte deste filme. Temos a impressão que num toque de mágica desembarcamos na França do séc. XIX, e nos tornamos vizinhos de Madame Bovary. Numa experiência de pleno êxtase, vamos redescobrindo aqueles lugares antes tão bem descritos por Flaubert, e seja no campo, ou nas cidades, nas ruas ou no interior da casas, em suas mobílias, nos aspectos e fisionomia das personagens, em seus modos de expressão, tudo isso é-nos apresentado e passa diante dos nossos olhos, tão naturalmente, que chegamos a sentir o cheiro das coisas, das pessoas! Chabrol reconstitui e intui o seu material literário de maneira tão honesta, que confere a nós, espectadores, uma intimidade de contemporâneos de Flaubert. Eis o segredo da plenitude do filme. E se acusam Chabrol de fazer uma Madame Bovary naturalista, acho mesmo que é! E daí? Qual o problema? O filme é magistral e, graças a Deus, Naturalista!
Os figurinos concebidos por Corrine Jorry são, além de exuberantes, um verdadeiro trabalho de arqueologia da moda. Um trabalho minucioso, caprichoso e preciso que veste com sinceridade desde os personagens mais humildes como a ama da filha de Bovary, e os pedintes de rua, passando pelo completo rigor das vestimentas masculinas do diferentes homens das cidades, até alcançar quase a perfeição das roupas caríssimas que Emma passa a ostentar. O ponto máximo da beleza dos figurinos se dá no famoso baile de máscaras, onde Emma passa de fato a desejar a vida de fantasias, que tempos depois tentaria viver...
Toda a música, num acerto de coerência, parece ser a externalização do espírito de Emma, com notas que perpassam a languidez, a fragilidade, a irresponsabilidade, a confusão, a sensualidade, a melancolia, o desespero, a loucura, e sempre, em todos os momentos algo parece indicar à premunição do fim trágico.
Todos os atores estão incrivelmente bem. Os franceses têm esse bom hábito da boa interpretação. Este é um filme sustentado na ótima interpretação de TODOS os seus atores e numa magnífica direção de arte. E Claude Chabrol sempre quis isso. Para tanto tem plena convicção de que para o filme ter êxito, precisa concentrar toda a força dramática na aura da protagonista, e, por isso, convoca uma atriz de sua confiança para VIVER o papel: Isabelle Huppert. E Huppert numa perfeita sintonia de trabalho com o seu mestre diretor se sai, ao contrário do que dizem alguns, ela se sai muito bem! Não é uma personagem fácil. Ao contrário, labiríntica! Ainda mais com os exemplos de interpretações de personagens femininas de filmes de época que temos por aí – tomados inocentemente por alguns, como bússolas de exatidão por décadas – por culpa das escolas inglesas e norte americanas. Huppert e Chabrol optam por uma interpretação onde Menos é Mais . A Madame Bovary de Isabelle é uma personagem sem firulas, sem exageros e sem pieguices melodramáticas, antes é uma personagem defendida com limpidez, apresentando transições dramáticas e subjetivas equivalentes, sem dúvida, com a sinceridade verossímil pretendida por Flaubert. Acusaram de fria a performance de Huppert. Bobagem, seu trabalho é correto, convincente.
Ressalta-se ainda, que não obstante desde o séc. XIX o significado da figura e da personalidade de Madame Bovary ter sido projetado sobre diferentes causas e bandeiras, tanto o diretor quanto a atriz preferiram criar uma personagem sem direcioná-la especificamente para a defesa ou promoção de determinada leitura política, sociológica ou classista. Foi um acerto. Pois Madame Bovary é o que é: simplesmente, Madame Bovary! Prefiro vê-la sempre, sob a perspectiva do próprio Flaubert, que me leva a crer que Emma Bovary somos todos nós! Que Bovary é a sociedade em seu todo complexo e contraditório. Se encará-la somente como uma adúltera, uma inconseqüente, egoísta, irresponsável, uma covarde que prefere a morte a enfrentar a vida e os seus problemas, aí não me interesso por Emma Bovary. Mas ainda sinto o seu cheiro...

Hedre Lavnzk Couto.

p/ Carolina

'Tocaia no Asfalto', saudades do bom cinema

Há muito ouvia falar de Tocaia no Asfalto, filme do cineasta baiano Roberto Pires, que esteve em cartaz em 1962. Amigos não se cansavam de fazer-me entusiasmados relatos de como tal filme se transformou num fenômeno de bilheteria, e de como toda a sociedade soteropolitana da época lotava as salas de exibição, numa frenética corrida para assisti-lo. Conduto, para minha aflição, a curiosidade só aumenta e eu jamais tinha acesso ao filme. Eis que na última quarta-feira pude conferir a exibição de uma cópia restaurada em 35mm de Tocaia no Asfalto. Gostei muito! É um daqueles bons filmes, cujas imagens teimam em abandonar a cabeça.
Neste seu filme Roberto Pires nos presenteia com imagens marcantes de uma Salvador de fins dos anos 50 e inicio dos 60. Já percebemos de pronto ser este um dos grandes talentos de Pires - o olhar apurado na escolha das locações e dos ambientes. Meu jovem olhar de 26 anos percorreu maravilhado e atônito aquelas imagens arqueológicas, casarões, praças, ruelas e esquinas - algumas das quais já desaparecidas – sobretudo, como foi bom ver em movimento os tempos áureos da Rua Chile, ver bairros inteiros ainda com ares de sítios rurais; ver o Pelourinho ainda habitado por gente e gingas espontâneas, ver as nossas praias ainda com tons virginais, ainda livres do banho de concreto e do loteamento mercadológico que se seguiria, ver o trânsito ainda não caótico, ver bem explorada a plasticidade cinematográfica da bela Igreja de São Francisco e do monumental Cemitério do Campo Santo.
Mas Roberto Pires não para por aí. Ele faz de Tocaia no Asfalto um filme que, partindo de reflexões e retratos locais, se torna universal e atemporal. Característica essa comum às grandes obras de arte. Tocaia no Asfalto ousa tocar nas delicadas questões políticas e sociais da Bahia e do Brasil daquele tempo, a saber a corrupção crônica inerente à classe política, os interesses públicos e o Bem Comum negligenciados ao descaso em conseqüência de políticos desonestos que se apossam da coisa pública para usufruto próprio, protagonistas de escândalos e CPIs (comissões parlamentares de inquérito), políticos envolvidos em crimes e conspirações. Retrata-se de um lado o coronelismo, o desavergonhado cabresto e do outro suas conseqüências, o povo abandonado em suas necessidades básicas, os pobres largados a sua própria sorte, um sistema prisional falido, cadeias lotadas, perpetuação do poder dos mais ricos ou mais fortes sobre os mais pobres e mais fracos. Atualíssimo este Tocaia no Asfalto. Hoje as vésperas de 2010, havendo exibições pelo Brasil deste filme de 1962, os brasileiros reconhecerão na película antiga um aspecto triste de seu país. Em havendo uma exibição no Congresso Nacional, os nossos políticos da Câmera Federal e do Senado Federal se identificarão sem grande esforço com o personagem do coronel baiano Pinto Borges e seus comparsas.
Essa capacidade de tratar de coisas úteis e tocantes à uma reflexão da sociedade sobre si mesma e sobre a saúde de suas instituições, em minha opinião, é o que faz de Roberto Pires o maior cineasta baiano de todos os tempos. De resto, a sua exímia instrumentalização e faro técnico para a sétima arte é ‘somente’ a bagagem complementar de um grande observador inquieto e inconformado com as mazelas que o circunda. E aqui uma provocação: o cinema baiano atual (temos?) mesmo sendo contemporâneo de artifícios técnicos modernos e de uma escola de produção audiovisual industrial não consegue superar nem se igualar aos grandes feitos do Ciclo Baiano de Cinema, não somente, como dizem, por causa da falta de subsídios estatais. O cinema baiano se afastou do seu público na medida em que se afastou das questões de sua própria cidade, do seu próprio cotidiano. O que temos, para usar expressão já dita por alguém, são “as viúvas de Gláuber”. E que viúvas chatas, monótonas e umbilicais. Nossa produção se reduziu a subjetividade hilária de filmes inúteis como “Esses moços”; a chatice autobiográfica viajante de Edgar Navarro em filmes como “Eu me Lembro”, e dizem que vem mais ainda; e a pornochanchadas mal realizadas e gritadas, como ”Cidade Baixa”, que nem de longe lembra o brilho de produções irresponsáveis como ‘Oh Rebuceteio”. O cinema baiano deixou de ser uma arte democrática e passou a ser uma arte feita por cults para cults. Foi o suicídio mais besta de que já tive noticias.
Voltando à Tocaia no Asfalto o argumento de Rex Shindler é excelente. Conduz maestramente a complexidade dos assuntos a serem abordados, numa fábula cativante. Já o roteiro, do próprio Roberto Pires, também segue essa linha de competência, construindo cenas e diálogos interessantíssimos. Os diálogos, nem mesmo aqueles mantidos entre os personagens da classe rica, são chapadões ou excessivamente formais, com uma linguagem ‘prosaica’ as pessoas dos diferentes núcleos do filme de Roberto parecem pessoas. Claro que ainda verifica-se uma teatralização muito forte no falar, os atores não se identificam psicologicamente com os personagens (pelo menos não ainda a moda stanislavskiana), mas os atores deste filme interpretam com uma simplicidade tão dedicada, que isso se torna uma verdade que leva o espectador a não duvidar em momento algum da pureza do pistoleiro de Agildo Ribeiro nem da bondade da prostituta de Arassary de Oliveira. Aliás, quão feliniana é essa prostituta Ana Paula, com alguns ajustes e caberia dentro de Noites de Cabíria.
O espírito inquieto de Roberto fez dele um grande experimentador de “formas de fazer”. Na montagem de Tocaia no Asfalto nota-se claramente que antes de procurar um estilo fixo, ele estava empenhado numa investigação por possibilidades. Simultaneidade de cenas, seqüências estonteantes, ângulos de câmera ousados para época, planos detalhes inovadores, atestavam o gênio. Alem de tudo isso, tem a música de Remo Usai, que sob as necessidades de Roberto acompanha na medida certa cada sensação do filme, mesmo quando da sua ausência, estabelecendo assim silêncio perturbador como nas cenas do cemitério antes do assassinato e também na cena final da Estação nos momentos onde Ana Paula espera pelo pistoleiro amado e os outros dois homens a seguem. A fotografia de Hélio silva acompanha o acerto do resto do filme com destaque para a cena noturna em que o deputado leva a surra; também para a cena da praia entre o deputado e a filha do coronel; e também para a cena inicial do bar onde o pistoleiro de Agildo mata o homem que lhe acompanha sentado à mesa. Gláuber Rocha foi produtor executivo desse filme. Antonio Pitanga estava estreando na pele de um pistoleiro obscuro e divertido.
Existem projetos para se restaurar outros dois longas de Roberto Pires (‘Redenção’, 1959; primeiro longa baiano) e (‘A Grande Feira’, de 1961). Os fãs do bom cinema, dos verdadeiros homens de cinema e da cidade do Salvador agradecem e esperarão mais uma vez ansiosos por mais um encontro com a obra de Roberto Pires.

Hedre Lavnzk Couto

Filme visto em exibição especial, após restauração, na sala Walter da Silveira, Barris, 27, prédio da biblioteca pública, Salvador, em 16 de dezembro de 2009.

‘SEÇÃO ESPECIAL DE JUSTIÇA’, de Costa-Gravas

Em sua fita Seção Especial de Justiça (Section Speciale. Drama, 1974/França, 105 min.), o cineasta grego Constantin Costa-Gravas, inspirado em livro de Hervé Villeré, aborda um controvertido episódio ocorrido na recente história francesa: Durante a II Guerra Mundial, em 1941, os nazistas faziam-se presentes no território e nas esferas políticas francesas, provocando profundo incomodo e descontentamento na população, em especial aos jovens que, movidos pelo patriotismo e pelo sentimento de revolta contra o governo colaboracionista, organizaram grupos terroristas comunistas e articularam atentados contra autoridades alemãs. Bem sucedido um destes atentados, é feito vitima um oficial alemão; irado, o governo nazista exige do governo francês a imediata execução dos autores do crime. Assim, sob forte pressão alemã, e pretendendo a todo custo nomear culpados, os políticos franceses criam um aparato estatal repressor e arbitrário. Mesmo violando os princípios jurídicos da Irretroatividade da Lei Penal, é sancionada uma lei de exceção, retroativa, que estabelece a instalação de Tribunais de Exceção para julgamento de cidadãos envolvidos em atividades comunistas, em tais Tribunais Especiais não caberiam recursos nem possibilidade real de apresentar defesa.
Acontecia que logo a vanguardista França acostumada a anunciar com orgulho e legitimidade o grito da Revolução Francesa de liberté, egalité e fraternité, maculava ali o seu Poder Judiciário, permitindo a instauração e funcionamento dos Tribunais de Exceção, ultrajando a ordem jurídica e ameaçando as garantias individuais dos cidadãos. Estava em risco a tradição democrática dos franceses e seu ideal de justiça.
Hoje, analisando este fato político histórico pelo retrovisor, surge-nos uma série de indagações a respeito de quais os fatores, quais as posturas desempenhadas pelos políticos e pelos operadores do Direito da França de então, que patrocinaram ou facultaram aquele período trevoso do Judiciário e da Sociedade Francesa como um todo. Para iniciar um raciocínio reconstitutivo como este, é primordial não perder de vista que, àquele momento, a própria França já se encontrava sob um regime de Exceção Política imposto pelo domínio dos tentáculos bélicos da expansionista Alemanha de Hitler. Desta maneira tinha-se um Estado e um governo francês subjugados pela política nazista, e se o governo encontrava-se submisso àquela altura, tendo já dois dos seus três poderes constituintes (o Executivo; e o Legislativo) viciados pelo mando alemão, o próximo braço democrático na mira irrefreável dos invasores haveria de ser inevitavelmente o lastro da justiça, o Poder Judiciário.
Torna-se um exercício de penosa abstração projetar como seria possível ao Poder Judiciário, resistir incólume, a manipulação política alemã, diante de um quadro interno onde todos os pilares institucionais do Estado francês agonizavam em estado de sítio e guerra. Num cenário como aquele é de se considerar que todas as decisões passam a ser de cunho político pragmático, aos governantes, acuados, mesmo contando ainda com algumas resistências isoladas de alguns líderes, que pensavam resistir não se sabe como, aos invasores, aparentemente sobravam apenas a missão de evitar um desfecho ainda mais drástico em terras de França. A problemática surge, por conseguinte, quando da tentativa de qualificar do ponto de vista da Ética e dos Princípios Deontológicos a postura dos operadores do direito francês daquele contexto (em especial, a dos magistrados).
É sabido que a função pública judicial aconselha o Jurista da necessidade de seguir Os Princípios Deontológicos da moralidade, da imparcialidade, da independência; e também é sabido pelos mesmos juristas que proceder a mecanismos como o de violar o Principio Jurídico da Irretroatividade da Lei Penal, bem como estabelecer Leis e Tribunais de Exceção pode promover a temível Insegurança Jurídica, ameaçando contundente o pleno exercício do Estado de Direito. No entanto, é no estado de precariedade e adversidade que se conhece o teor do espírito e da índole dos homens. No caso em análise percebemos que houve uma relativização da postura dos magistrados em relação á situação enfrentada: Alguns juízes, mesmo sofrendo algum tipo de represália, mantiveram inabaláveis os seus princípios éticos e morais, negando-se definitivamente a compactuar com atos jurídicos que se mostravam incompatíveis com a plena justiça; todavia, alguns outros não concordavam inteiramente com a situação de exceção jurídica, mas, temendo sanções profissionais, se prostravam omissos e impotentes diante da falência anunciada do sistema; por fim, existiram aqueles magistrados que, infelizmente, como acontece a alguns indivíduos diante da decadência geral, externam sua face corruptível, tirando assim proveito profissional ou material de uma crise danosa ao Bem Comum. Em linhas gerais, verificamos assim, através deste caso retratado por Costa-Gravas, que mesmo numa profissão como a magistratura, onde a conduta e o pleno exercício da Deontologia são tão imprescindíveis à prática do dever profissional, o caráter dos homens ainda se denota falível, sendo, portanto cada índole e subseqüente ação comportamental, resultado de um processo cultural particular do indivíduo.