Se João Ubaldo Ribeiro estava inspirado por patente sensibilidade lírica quando escreveu seu romance Sargento Getúlio, deve-se reconhecer que o diretor Gil Vicente Tavares, ao realizar sua adaptação teatral desta obra, soube banhá-la cenicamente com uma bela investida expressionista.
Trata-se de um monólogo genuíno – sem truques de pirotecnia, sem tentativas de se mascarar desonestamente as dificuldades inerentes ao formato em questão – sustentado pelo vigoroso desempenho do ator Carlos Betão, em bonita sintonia com a coragem da direção.
Gil Vicente Tavares cumpriu sua promessa de não se filiar à ‘Escola da estética da seca’, e, fazendo visível esforço para despir-se de estereótipos e preconceitos, foi perspicaz em identificar aquilo que de mais importante existe no texto original do autor de Itaparica: a sugestão de que a despeito das dificuldades e dores enfrentadas por um povo, por mais flageladas que se encontrem suas almas, sempre possuirão riquezas que ninguém jamais terá sucesso em lhes roubar: a capacidade de sorrir, de resistir, de acreditar que o futuro virá melhor, por mais inóspita que esteja a vida.
Parece-me que a inteligência reside no fato de o diretor não ter pena do personagem, e, sim, admiração. Sob esta ótica, G. V. Tavares pôde ater-se, com esmero, na investigação da monumental beleza lingüística do homem simples nordestino, representado aqui pelo Sargento Getúlio, com sua irresistível musicalidade no falar, de humor peculiar, um exímio contador de casos, de personalidade paradoxalmente tenra e dura.
Sargento Getúlio é um sujeito que se vê imbricado com a tarefa de conduzir um prisioneiro entre dois Estados nordestinos. Quando a peça começa, aparentemente o personagem se encontra no meio da estrada. Numa primeira leitura é noite e ele está ao lado de sua caminhonete.
Ocorre que não demora muito para o espectador atento perceber que diante de si não se desenha uma situação realista. Ao contrário, aos poucos o personagem reiteradamente vai misturando diferentes tempos e espaços. Convoca e dialoga com contracenas imaginários, alguns dos quais interpretados por ele próprio. Escancara-se, assim, uma atmosfera quase onírica, que vai além da exteriorização de uma mera confusão mental.
Gil Vicente Tavares que não é bobo nem dorme de toca, habilmente concluiu que para melhor expor em relevo o conflito dramático deste personagem ubaldiano, caberia adotar uma encenação assumidamente em busca de uma estética expressionista. O primeiro instante do monólogo se inicia com o S. Getúlio de costas para a platéia, gritando para alguém. Gritos estes que serão projetados de diferentes maneiras, conforme a evolução da intensidade do conflito, por vários outros momentos no desenrolar da peça.
Pois bem, o drama expressionista alemão era prolífico neste tipo de construção. Obras como os ‘Scherei-dramer’ (dramas do grito), de August Stramm, começavam com um grito. Era a exteriorização da agonia do estar perdido. Ou seja, a abstração era de tal ordem que o grito servia para responder à crise da autodestruição.
Na situação dramática expressionista o personagem experimenta, em êxtase, uma espécie de pesadelo. Proferindo confissões e utopias. E tem-se o total rompimento da linguagem “coerente’, à medida que aumenta a complexidade do embate entre o instinto livre e a clausura das convenções ou meio adverso.Em certa gradação, é o que ocorre em Sargento Getúlio, pois.
A encenação de Tavares, ainda, todavia, aplica a receita expressionista à plástica. A iluminação de Eduardo Tudella, com variações angulares e cromáticas bem planejadas, coopera na construção da abstração. O cenário de Rodrigo F. (recorte lateral da cabine de uma caminhote rural, sobre um praticável central), embora pudesse ser muito mais funcional e preciso semanticamente, não chega a prejudicar. A trilha sonora serve bem.
Entretanto, o que sustenta a peça e deve ser comemorado é o trabalho do ator Carlos Betão. Num espetáculo cuja performance requer minúcias de concentração mental e imprescindível vigor físico, este ator demonstrou disciplina, além de contar com ótimos pulmões. Por outro lado, sempre é possível aperfeiçoar-se: o espectador assíduo já anotou que C. Betão possui um pequeno repertório de vícios gestuais, principalmente de braços e mãos, novamente trazidos à cena neste novo trabalho, que pedem por uma revisão.
Hedre Lavnzk Couto
sexta-feira, janeiro 13
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Meu caro crítico, eu não sei você, mas eu me comovo muito com esse ator. Pra mim é o melhor ator baiano em cena no momento.
ResponderExcluirCalazans Freitas
Caro Calazans,
ResponderExcluirem alguma das críticas aqui postadas, já dizia eu que Carlos Betão - juntamente com Marcelo Praddo - são os dois melhores baianos em atividade. E ambos também rendem bastante quando sob a direção de Gil Vicente Tavares (melhor diretor de sua geração). Na encenação de 'Os javalis' os três nos mostraram um espetáculo marcante. Embora em 'dos males do casamento...' tenham desempenhando uma peça bem mais tímida. Betão raramente aparece mal sobre o palco. Ele e Marcelo salvaram o Hamlet de Arildo de um vexame total. Marcelo estava absoluto no 'bonde chamado desejo', de F. Guerreiro. pena é que neste novo espetáculo em cartaz no XVIII esteja tão deslocado. Mas paciência, não se pode acertar todas, né?