segunda-feira, janeiro 9

Crítica do espetáculo 'Cartas de amor para Stalin'

Começo hoje fazendo uma provocação aos meus leitores: vocês preferem uma arte supérflua ou “utilitária”? Uma arte teatral que se perca no curto caminho entre os umbigos de seus ‘fazedores’, ou, de contrário, espetáculos que projetem reflexões para além da ribalta, atingindo ao público, lhes produzindo efeitos colaterais acima dos pescoços?

‘Cartas de amor para Stalin’ é uma peça que pode servir bem ao propósito daquilo que a atual realidade suplica do teatro. Venho há algum tempo, nesta coluna, inclusive na última crítica – ‘O Terceiro Sinal’ – destacando que o teatro somente evitará o seu perecimento, irremediável dentre em poucas décadas, se, e, somente se, urgentemente, encorajar-se a converter-se num habitat de debates de ideias.

PAULO DOURADO, A BR 116 E JUAN MAYORGA

Confesso que esperava muitíssimo mais da direção de Paulo Dourado – gradíssimo diretor baiano, de quem eu gostaria testemunhar, pelo menos, uma nova encenação por ano. No entanto, frise-se, dos três espetáculos apresentados neste mês de dezembro, em SSA, pela Cia paulistana BR 116, Cartas de amor para Stalin é o único que merece atenção. Sobretudo, porque, enfim, através dele, elegera-se o teatro como espaço para discussões palpáveis.

A montagem parte do texto original do dramaturgo espanhol Juan Mayorga. Segundo dizem, um dos escritores mais encenados na atualidade. E conta um período da vida do escritor russo Mikhail Bulgákov (Ricardo Bittencourt), que, vivendo e produzindo num dos momentos mais agudos da Rússia stalinista, tem, por determinação estatal, sua Obra proibida de ser publicada e encenada.

CENSURA E OSTRACISMO

Isolado da classe artística, por manter dúbia posição diante dos exageros do Regime Socialista, Bulgákov cai em ostracismo, passando a exilar-se dentro de sua própria casa. Imerso em contradições internas, não se decidindo se deseja abandonar o hostil ambiente político que o censura, ou se, ao contrário, alia-se, irresolutamente, ao Estado déspota, define uma estratégia: empreende uma desesperada tentativa de comunicar-se diretamente com Stalin. Escreve-lhe compulsivamente diversas cartas – para tanto contando, num primeiro momento, com o auxílio de sua mulher (Bete Coelho) – às quais não logram respostas.

Tal prática torna-se uma obsessão exaustiva e inglória. Até que certo dia o telefone toca e, ao que parece, do lado da linha é o camarada Stalin, retornando-lhe a resposta de seus pedidos. Ocorre que no meio da conversa cai a ligação. Inicia-se ali, a perdição patológica de Bulgákov, que passa a viver colado ao telefone, esperando que o Grande Líder o chame de volta; como não acontece, Bulgákov passa a remeter cartas ao Kremlin com muito mais frequência, com tanta obstinação que as cartas, e a própria espera, tornam-se a única razão dos seus dias, empurrando-o a perder completamente a sanidade mental.

A ‘ALMA RUSSA’

Contudo, ressalte-se, o ‘Argumento’ é infinitamente mais rico do que o corpo dramatúrgico que Juan Mayorga conseguiu criar. Não conheço o texto original, e, portanto, não sei até que ponto P. Dourado adaptou-o à sua visão de encenador. Porém, falta, creio, tanto ao material dramatúrgico como à encenação, aquilo que os russos denominam de ‘alma russa’. Ou seja, certo tom, bem peculiar, inerente ao modo daquele velho Povo [viver e sentir] os limites dos dilemas porque passaram ao longo de sua História. No espetáculo, esta falta, essa deficiência de causa é verificada na letra dos diálogos do autor, e na seiva da interpretação dos atores. Faltou ao espetáculo investigar e compreender o espírito dessa gente que, certa vez, meu pai comparou, na sabedoria das analogias das pessoas simples, aos ursos.

O BREVE ROTEIRO DO COMPLEXO CALDO CULTURAL DA SOCIEDADE SOVIÉTICA

O artista atento, mesmo ainda na tenra idade, perceberá que, não à-toa o professor Stanislavski notou que se fazia necessário estudar, descobrir e praticar novos mecanismos de criação dramática, que possibilitassem aos atores uma maior aproximação com aquela que seria um tipo de interpretação condizente com a complexidade do legado ‘cultural-dramático’ russo. Povo que por séculos foi subjugado e drasticamente mutilado por outros povos, sendo os últimos deles os mongóis de Gengis Khan.

Mas eis que surgiu Ivan, o Terrível. Inventor e unificador de todas as Rússias. Iniciador da construção cultural que eles chamam de “A Grande Mãe Rússia”, o Tirano sanguinário deu início a um roteiro que, lá, pode-se verificar até os dias de hoje: essencial e plenamente, até o século 21 a Rússia jamais conheceu a Democracia. É uma questão cultural estrita. É claro que as coisas estão mudando por toda a parte. Mas aquele povo, de fato, teve e ainda tem, a despeito dos atuais protestos contra Putin, uma visão da democracia que não necessariamente se coaduna com o olhar ocidental. Tanto o é que Lenin, Stalin e seus camaradas interpretaram Marx de maneira bem particular, e deu no que deu...

BULGÁKOV, SERGUEI ENSEISTEIN, MEYERHOLD E MAIAKOVSKI

No período em que o personagem Bulgákok passa pelo claustrofóbico transtorno de não poder expressar-se através de sua arte, ou seja, praticar sua profissão, outros grandes artistas russos foram censurados, perseguidos e até defenestrados da vida pelo pelos desígnios da Revolução. Cite-se o cineasta S. Enseistein, que teve durante largo tempo sua obra anulada; o teatrólogo V. Meyerhold que foi ceifado; o poeta Maiakovski também foi estimulado a desapegar-se da vida. E note-se que alguns dessas pessoas que acabaram vítimas, haviam sido entusiastas fervorosos da Revolução do camarada Lenin. Aqui se prova os ingredientes da complexidade dessa tal de ‘alma russa’. Aos ouvidos de quem já vivia faminto por pão ou oxigênio, por consequência de 300 anos da dinastia dos czares Romanov, as boas novas prometidas pelo pessoal de “1917”, pareciam encantadoras.

PODER ESTATAL X LIBERDADE

Já disse várias e ainda revelarei outras reservas que tenho para com a presente encenação. Mas ela inexoravelmente arrebatou minha simpatia quando se dispôs ao debate. Que aqui me parece ser o de manifestar que é sempre salutar que o Estado jamais adentre aos limites das liberdades e garantias individuais fundamentais, tão caras à sociedade, por consequência. Por isso, a necessidade, amigos, de tornarmos o teatro uma arte viva. E inseri-lo também como arena para as ponderações urgentes e pulsantes da contemporaneidade.

Ser vivo. Ser útil. Isso sim, é ser vanguarda, e não fechar-se em si mesmo, protagonizando coisas ininteligíveis.Bem aventurado seja o teatro de debate de idéias. Porque dele despertará a grande reação contra as tiranetes de plantão, que se escondem sob pele de cordeiro, vermelha. Gostaria muito que pudessem haver, neste momento, montagens de “Cartas de amor para Stalin’, na Venezuela, no Equador, na Argentina; mas, tenho minhas graves dúvidas se seria plenamente possível tal. Estes países passam por um delicado momento, onde, novamente, os respectivos Estados foram apossados por caudilhos líderes de tendência ditatorial, que já não disfarçam suas investidas para limitar as liberdades de criação e expressão.

Artistas, jornalistas, intelectuais, os cidadãos sul-americanos, em geral, vêem doutra vez a eminência da sombra da mordaça do leviantã, em sua versão castellana. No Brasil, o Partido dos Trabalhadores costura o instante mais apropriado, para no médio prazo, deflagrar o sonhado Plano de Regulamentação da mídia. – O diabo que os carregue!

FELIZ NATAL

Acho que me empolguei, ou não foi? Terei agora que resumir todo o restante, pois meu vôo está quase saindo, é natal! O que posso dizer? Faltou ‘alma russa’. E faltou porque, neste sentido, o diretor não conseguiu ir além da tibieza originária do texto. E, registre-se: R. Bittencourt é um belo canastrão! Jamais conseguirá interpretar o espírito de um autor russo. Não tem profundidade humana para tanto. Já a Bete Coelho, aos olhos do público complacente mostra-se versátil; entretanto, ela na verdade está perdida, através de uma condução confusa.

A dinâmica da mistura - do entendimento que tiveram do texto Ricardo e Bete - lança aquilo que exige ser um drama, nas águas de um valdeville tosco, que muito desmerece a feliz intenção da BR116 de encenar um espetáculo que se propunha a uma conversa inteligente com a sociedade.


Hedre Lavnzk Couto

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