A Companhia BR 116 desembarcou em Salvador, na semana passada, trazendo à mala os três espetáculos do seu incipiente catálogo: ‘O Homem da Tarja Preta’ = espetáculo cuja crítica já foi publicada neste espaço -, ‘O Terceiro Sinal’, e ‘Cartas de Amor para Stálin’.
Idealizada e tocada pela conhecida atriz Bete Coelho e pelo entusiasmado ator Ricardo Bittencourt, a BR 116 nasceu embalada por ambiciosos planos de tornar-se uma constante fábrica de teatro. Em época de arte dramática tão atrofiada, devemos todos desejar-lhes muito boa sorte, ou melhor, ‘merde!’.
‘O Terceiro Sinal' trata-se de um espetáculo regular. O que já evidencia um avanço, diante do desastre que foi ‘O Homem da Tarja Preta’. E, frise-se, esse “regular” deve-se mais ao bom arranjo da forma do que a concepção conteudística.
O texto da peça é adaptado de escritos do ator-jornalista Otávio Frias. Sendo que desta vez Bittencourt chamou para si a direção, ficando Coelho com a missão de desempenhar o que eles nomearam de monólogo. Monólogo, todavia, com certeza, não é. Basta pontuar que, durante todos os sessenta minutos, a personagem de Bete contracena com contra-regras-personagens, além do que, a figura do próprio diretor, na maioria do tempo, aparece em meio à cena.
É, em verdade, uma confissão em primeira pessoa. Daí a ‘esperteza’ da direção que, almejando ter menos trabalho e reduzindo as possibilidades de incorrer em diversos erros, criou uma narrativa em contínua contracena, mantendo ainda assim, a reivindicação de monólogo. Se não honesto, senão ousado.
LABIRINTOS
Em cena, Bete Coelho representa um ator que tece aos espectadores depoimento dos processos de atuação porque passou ao longo de sua carreira artística. Com tons de ironia, humor e, até patologia, mas, nunca alcançando a profundidade, o personagem vai-nos revelando as vicissitudes do cotidiano do fazer teatral; detalhes das relações ator-arte; ator-criação do personagem; ator-colega de cena; ator-diretor; ator-público; enfim, ator e as vaidades e as inseguranças que integram o dia-dia dos camarins, das coxias e tablados, desde *Téspis. Sendo que há uma tentativa de constituir como pano de fundo, da narrativa, parte da história do próprio moderno teatro brasileiro.
ENCENAÇÃO
Do ponto de vista da composição plástica e dinâmica do espetáculo, a direção fez um trabalho equilibrado. Pontos positivos tais como a opção por um palco ‘nú’, a bem elaborada movimentação da personagem, a concepção de ‘monólogo-contracenado’, o uso de projeções de imagens bem selecionadas, aliados a uma precisa interação com as competentes iluminação e trilha sonora, conferiram consistência ao arranjo cênico final.
O OTÁVIO FRIAS DA BETE
Na saída do teatro, meu ouvido roubou, de passagem, parte de conversa de dois diretores teatrais que reprovavam o fato de ter-se usado na peça o pretexto da ‘biografia teatral’ do Otávio Frias, ao invés da história da própria carreira da B. Coelho. Bom, esse comentário não merece meu comentário. Contudo, a mesma dupla de diretores ressaltava também, só que dessa vez com mais indignação, que a Bete Coelho não conseguira recriar a figura masculina do Otávio Frias, propriamente dita. Vejam, preocupações como estas vindas de diretores de teatro, explicam bem o atual estado de pouca inteligência do atual teatro baiano.
Ora, pelo menos ao que tudo indicou, jamais foi a intenção do espetáculo obedecer às implacáveis leis da mimese – e, se o fosse, a própria atriz teria dado lugar a um ator para conceber o tal do personagem masculino. De minha parte, confesso que não identifiquei que a Coelho tivesse pretendido executar algum tratado cênico dos ensinamentos dos **Meininger, de ***Antoine ou mesmo de ****Stanislavski. Verdade seja dita, longe de estar brilhante, neste trabalho ela fez com competência aquilo que se prontificou a realizar.
O PECADO MORA NO UMBIGO
E se no terceiro parágrafo eu sentencio que o espetáculo consegue ser no máximo ‘regular’, agora explico: a peça perde-se, caindo quase na inutilidade, por ser demasiadamente umbilical. Seu discurso, seu conteúdo é morto para o grande público. E nunca é demais dizer, artistas: “o que interessa é sempre o grande público!”, e não uma platéia de cinqüenta pessoas, formada por atores, diretores e simpatizantes, excitadíssimos por identificação dando urras e possessos vivas de apoio ao teatro.
Em outras palavras, Bittencourt e Coelho conceberam um espetáculo hermético. Isso porque o universo, a rotina, os códigos e os signos que são exaustivamente tratados no transcorrer da narrativa, são largamente familiares para o “mitiê” teatral; mas já para o espectador tradicional a peça apresenta-se, inegavelmente, de difícil decodificação.
E aí, incorre-se naquele maroto equívoco de se fazer teatro para os amigos, ou para a “classe”. O que serve somente para apequenar ainda mais essa raquítica arte que ainda quer-se (sonha-se) democrática e expansiva. A pergunta que fica é: como um espetáculo como esse pretende viajar os 4 cantos do Brasil? Este tipo de arte - narcísica – é verdadeiramente útil para quem? E, ora, é por essas e outras que se demora tanto para realizar a conquista de um espectador assíduo e, de outro lado, perde-se centenas numa única apresentação.
NOTA DE FALECIMENTO
O teatro há muito está na UTI. E existem prognósticos veementes que atestam morte cerebral. Respira tão somente por meio de aparelhos financiados por migalhas de dinheiro público, ao passo que muitos, os mais pragmáticos, já cogitam a hipótese inadiável de eutanásia. O doente terminal está esquálido, tuberculoso, leproso, perdeu já tato, visão, paladar e audição, encontra-se abandonado a própria sorte de ser praticado por uma grande maioria de artistas desorientados e inábeis.
Quero aqui registrar que estou com Abujamra, pelo menos naquilo que ele alerta quando diz que a única maneira de o teatro sobreviver, ao menos sob a acepção digna de verdadeira arte, será converter-se num espaço para o debate de idéias. Mas não as umbilicais. E sim, a infindável quantidade de questões de urgência urgentíssima que nos bate à porta a todo instante.
“DUVIDA DE QUE O SOL GIRA”
Mas não temos mais dramaturgos. Onde estão os bons dramaturgos contemporâneos? Quando penso na boa dramaturgia me vêm à cabeça ‘Ricardo III’, de W. Shakespeare; ‘O Inimigo do Povo’, de Ibsen; ‘A morte de um Caixeiro viajante’, de Miller; ‘O Pagador de Promessas’, de Gomes; ‘Boca de Ouro’, N. Rodrigues; ‘Um homem é um homem’, de Brecht; ‘Quem tem medo de Virginia Woof’, de Albee; ‘Esperando Godot’, de Beckett; ‘Um Bonde chamado Desejo’, de Tennessee entre tanto outras obras que sacodem até hoje qualquer sociedade.
Deveríamos todos devorar ferozmente os clássicos. Imitá-los, parafraseá-los, e quem sabe assim, aprenderíamos, com humildade, a amenizar esta, que nestes dias miseráveis, se traduz em difícil tarefa: ir ao teatro. Até quando isso será pior do que estar num circo ou num music hall de insuportável mal gosto... no circo!, no music hall!, no circo!, no music hall!, no circo!, no...
ps: “Nem tudo o que é medrosamente copiado da natureza é fiel à natureza”. – Adolph Von Menzel
*figura que aparece na história do teatro como o primeiro ator de todos os tempos.
**,***, **** escolas de encenadores realistas
p/ M. J., com devota saudade.
Hedre Lavnzk Couto
segunda-feira, janeiro 9
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário