segunda-feira, janeiro 9

Crítica do espetáculo ‘Casa número nada’, ou, o monólogo da vulva azul'

O culpado pelo acidente de percurso foi Fernando Neves (amigo querido de boa data e ator (dos bons!) a quem tive a honra de ter sob minha direção nos espetáculos ‘A Mulher Sem Pecado’ – 2007; e ‘Os Sete Gatinhos’ – 2008; ambos, da obra do inesgotável Nelson Rodrigues.), nos encontramos ao acaso, nas imediações dos Barris, Neves seguia para o teatro, e como me divirto muito em sua presença, acompanhei-o.

E lá fomos nós ao Teatro Xisto Bahia. Um monólogo com dramaturgia e direção de Fábio Vidal. Um Solo da atriz Mariana Freire. Vamos ao trabalho: a direção optou por subverter a rígida disposição palco-platéia (‘à italiana’) do Teatro Xisto, estabelecendo uma outra convenção de caixa cênica [não menos rígida que a primeira], aplicando uma configuração onde, com uso de fita crepe, desenhou-se no tablado uma planta baixa de uma espécie de apartamento 1/4 sala, e o público, por sua vez, assentou-se em torno dos lados do quadrado. Com esta opção (que ultimamente tem virado moda entre nós), Vidal, por certo, pretendia criar no espectador a sensação de estar dentro de certa ‘casa número nada’. Esta impressão, entretanto, ele não conseguiu produzir, e este é apenas um dos diversos problemas do espetáculo.

A dramaturgia apresentada por Fábio Vidal é incompreensível. Não se compreende o cerne do discurso. Atira-se, desse modo, para todos os lados, é como aquela velha imagem de um liquidificador megalomaníaco, que quer mastigar o mundo todo, e que associado a um ventilador bêbado, deseja cuspir baboseiras mal cheirosas na cara do espectador-pecador. Li o jornal ‘A Tarde’ onde o diretor diz que seu monólogo discute questões como o vazio existencial; a retirada da segurança material; o sistema capitalista de consumo; e o “ter” versus o “ser”. Porém, na peça, que é onde realmente interessa aparecer, nada disso é percebido. Nada. O que fatalmente leva o espectador a concluir, que, a julgar por este atual trabalho, Fábio Vidal é melhor candidato a filósofo que diretor (dramaturgo) de teatro.

Os dilemas do mundo aí estão. O artista, o dramaturgo, o ator, o funâmbulo, ou sei lá quem mais, podem optar por viver como homens de seu tempo ou não. Mas, sobretudo, faz-se necessário livrar-se da tentação de construir qualquer ‘samba-do-maneca-cego’ e apresentá-lo ao mundo como grande supra-sumo da arte moderna. O artista não pode curvar-se diante da tentação da facilidade. Certos temas tão batidos, e tão reivindicados como chaves para o entendimento e transformação da complexidade da sociedade moderna, como o consumismo; o capitalismo; o individualismo; a solidão etc são, longe de dúvida, fontes poderosas para a produção de objetos artísticos do mais alto valor. Porém, aquilo que de pior pode haver num artista é a incapacidade de autocrítica. Certas coisas, não se podem apresentar, nem sozinhos, ao espelho. Sob pena de ele quebrar-se.

O monólogo de Vidal e Mariana dura intermináveis 62 minutos. E, neste ínterim, não se trata, em momento algum, da tal da ‘retirada da segurança material’; mas, sim, de insegurança artística. Não se discute ‘vazio existencial’; porém, antes, vazio criativo-técnico. E o único “ter” que se revela, é o da esterilidade de talento e incapacidade de realização, versus o “ser” do auto-engano.

A personagem de M. Freire adentra à planta baixa da ‘casa número nada’, e lá, como que dominada por sucessivos e alternados ataques de esquizofrenia, neurastenia, gritinhos histéricos de toda sorte, e uma aura geral de psicopatia mística, debate-se contra o chão, vomita desesperadamente diversos assuntos e passagens obscuras; bufa, mija, baba, chora, e , sobretudo, num momento apoteótico – exibe a vulva! Espetáculos como este afastam os - já tão raros – espectadores do teatro. Não se aproveita nada dessa peça. Não há um aspecto, sequer, que se salve.

O ridículo vai desde os estridentes gritos de Mariana; à total inabilidade do trabalho corporal; ao descalabro de uma perigosa escalada psíquico-emocional que chega a dar pena (do ‘papelão’) da atriz em cena. Sem contar do desconforto de um público atônito e mártir, diante da confissão cênica atabalhoada de uma direção que se rende perante o invertebrado monstro que criou.

Não se entende patavina da construção da personagem de Mariana. Em cena, parecia uma adolescente em peça colegial, desesperada para salvar, que fosse, meio minuto de sua representação. Mas como ‘o inferno são os olhos dos outros’, diretor e atriz, não hesitaram em nos conferir grande e sacrificiosa prova de amor pelo bem da arte: aderiram, euforicamente, à banalização do nu.

Porque assim é que é: peça de teatro que se preze, tem que mostrar a vulva, meu chapa! Já é longa tradição entre nós. Se se percebe que o espetáculo é fraco em arte, apela-se, vaidosamente, para o desfile das vaginas ávidas por uns segundos de exposição deslumbrante. Nossos artistas modernos e descolados – que sabidamente pouco lêem nem estudam – descobriram a pólvora, ou melhor, a força das curvas e dos pêlos pubianos. E, iluminados, decidiram: “queremos chocar esse público sem-gracinha, normalzinho e pançudinho!”. Mal sabem eles (os artistas retados de plantão) que as vulvas já não são tão perigosas, e que, quase todos já temos, pelo menos, uma dessas feras em casa. O que choca, de verdade, nestes dias, é a tamanha falta de talento sobre os nossos palcos.

Visto em quarta-feira, 17-08-11. Salvador-bahia-brasil.

p/ Carol.
Hedre Lavnzk Couto

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