Na noite chuvosa de sábado (30/07/11), compareci à versão baiana do espetáculo Camila Baker. É a terceira vez – versões anteriores datam de 1999 e 2005 – que o diretor Fernando Guerreiro assina a direção do texto de Emilio Boechat. Seguindo o surto de adjetivação em voga, Guerreiro acrescentou ao espetáculo o sub-título “uma comedida estranha”. E confessa o dilema que o dominou antes de decidir-se pela nova montagem: “Camila de novo, homens vestidos de mulher de novo, comédia com ares de besteirol de novo... danem-se as questões intelectuais.” Estas palavras demonstram a coragem artística do encenador. Porém, por que “danem-se as questões intelectuais”? Na seqüência de sua fala, Fernando proclama: “A peça é muito inteligente.” É? E por que a peça é muito inteligente? E, prossegue: “A montagem é uma homenagem ao teatro.” É? De qual forma? Por que “brinca com clichês de vários gêneros de encenação”? E mais adiante o diretor baiano que mais admiro, arremata: “mas o principal é que continuo a exercitar um gênero que mudou a cara do teatro baiano e fez história." Ora, mas que gênero é esse, Guerreiro? E Carambolas! Um diretor que manda às favas questões intelectuais, não pode sustentar seu discurso e marketing nessa conversa de gênero. Outra pergunta, senhores: qual é a cara do teatro baiano?
De minha parte, infelizmente, para analisar o espetáculo preciso me acercar das tão malfadadas “questões intelectuais”. E, para começo de conversa, trata-se de grosseiro equívoco reivindicar à ‘Camila Baker’ a denominação de ‘besteirol’. A estética Besteirol como surgiu em São Paulo, e no Rio de Janeiro (Salvador é uma outra história, ver *texto sobre o assunto neste mesmo Blog) nos anos 1980 e 1990, sempre teve por objetivo único levar a platéia ao riso - e nisso reside a inegável genialidade desta vertente do humor. Esse movimento jamais desejou transmitir mensagens com o intuito de transformar pessoas e o mundo - e isso é invejável. Em essência, é um gênero que exige técnica apuradíssima, que, entretanto, visa tão somente o deboche pelo deboche - e isso é refinado, por mais que neguem alguns. Se certas coisas são apenas questões de rótulos, outras, não. E àqueles que não se apegam a determinadas minúcias, faz-se menos perigoso não adentrar a certas discussões, sob pena de escancararem fragilidades técnicas... e até artísticas.
Dizer Camila Baker um espetáculo em homenagem ao teatro é definitivamente excluí-lo do Gênero Besteirol. Pois este não se interessa em homenagear patavinas, apenas se diverte em divertir o espectador. E eis que nos aparece outra questão: Afinal, a qual estética pertenceria Camila Baker? Me passa a impressão de uma tentativa inábil e, talvez, inconsciente, de beber do Show de Variedades. Todavia, para realizá-lo, a contento, necessita-se razoável pesquisa e prática nesta tradição artística, que chega a flertar com o non-sense. Fernando demonstrou não possuí-la. O Show de variedades não está na sua ‘zona de conforto artístico’. E a tal da [homenagem] que pretendera fazer às artes cênicas, tem aspecto de acomodação artística. É como se o diretor não tivesse se desafiado o bastante nesta peça. Preferiu o caminho daquelas facilidades e truques banais, capazes de conseguir a cumplicidade, momentânea, de um público ávido para jantar – e com parca exigência em matéria de humor – habituado a gargalhar até das ‘macaqueadas’ do – ‘imerecível’ – Renato Piaba – sabidamente cria artística de Fernando Guerreiro. E cá para nós, se homenageia alguém ou algo, simploriamente citando nomes de artistas e parodiando esquetes de gêneros? Contem até três, senhores.
O que mais prejudica o espetáculo não são os homens vestidos de mulher; nem os ares de besteirol. Talvez, seja justamente o confesso desprezo pelas questões intelectuais, e a heróica presunção de a direção considerar-se a si e a seu produto, irremediavelmente, inteligentes. A direção tem a obrigação de questionar-se e situar-se quanto à zona estética onde se está pisando. Por vezes, mesmo que seja por analogia, faz possível localizar-se. Assim, identifica-se as peculiaridades e complexidades ditadas pela montagem, de modo que surgem os recursos e ferramentas necessários para percorrer os desafios. Ocorre que, ao que me parece, Fernando tem para si que lida com o Besteirol em Camila Baker – e fez o que fez com a narrativa. Ele nos conta que o primeiro material que viu de Camila eram “cenas curtas hilárias”, e que depois pediu ao autor que as ligasse, construindo uma trama, por mais absurda que fosse. Pois bem, o que se tem é uma narrativa extremamente cansativa. A que podemos apelidar de fórmula ‘vai-e-vem’. A trama, que se propõe a contar as peripécias da excêntrica atriz Camila Baker, é narrada, rigidamente, de maneira que alterna cenas do presente e outras que revelam fatos e passagens experimentadas pela protagonista. Mas o ‘vai-e-vem’, contínuo e previsível, causa tédio. Tanto que já aos 52 minutos de peça, já nos causa certo aborrecimento.
Pulemos, pois, para a plástica do espetáculo, para em seqüência visitarmos os demais elementos. O cenário é de Zuarte Jr. Como sempre, Zuarte ajuda os diretores com quem trabalha e constrói um bom cenário: Funcional, sintético e comunicativo. Este cenógrafo tem um estilo de traços fortes, cortantes, que às vezes chegam a beirar o impressionismo e/ou surrealismo. Aqui, ele nos apresenta a sala da decadente mansão de Camila Baker. Sala cujas laterais e fundo estão vestidos por grandes cortinas de cores azuis (claro e escuro), púrpura e cinza. Ao fundo, existem duas grandes janelas, por onde já entram até frondosos galhos de árvores. Para conceber e executar o cenário, Zuarte, certamente, deve ter-se guiado pela indicação de uma das personagens, que já no início da peça se refere ao ambiente como “casa vazia e acabada. Onde já teve vida e festa.” E onde apenas sobraram “cupins, goteiras” etc. O cenário é habilidosamente equilibrado. À esquerda baixa nasce uma escada, daquelas de corrimão antigo, que leva aos aposentos de Baker. À direita baixa situa-se uma velha poltrona em perpendicular à platéia. Somam-se a isso duas cadeiras avulsas para serem usadas ao sabor das situações. No centro da sala, observamos um praticável, que faz as vezes de um palco dentro do palco; sendo ladeado à esquerda por um velho lustre; à direita por ma coluna grega em ruína; e ao fundo por uma [incógnita, para mim] caveira bovina. E é precisamente neste palco central onde ocorrem a maioria das cenas do passado de Camila. Ponto positivo para a iniciativa de escancarar a estrutura rústica do praticável, como a chamar atenção de que não se tem ali compromisso algum com resquícios de realismos. Isso, sim, é homenagem a teatralidade. No geral, o ambiente tem o clima de um cabaré aposentado.
A iluminação de Irma Vidal trabalha em sintonia com os outros elementos plásticos. Não distorce o cenário. Não anula o figurino. Não esconde os olhos dos atores. E é muito generosa com a maquiagem. Irma aqui trabalha com o magenta; o âmbar; e uma gradação de azuis claros e escuros, além de luz branca. Repete-se a conhecida característica desta iluminadora, a capacidade de oferecer eficácia.
Assim, é nesta atmosfera que os atores nos apresentam a trama de Camila Baker. São cinco intérpretes: todos estão bem. Fernando Marinho interpreta Camila Baker. Ele é um comediante de muitos recursos; porém, talvez pela maratona de troca dos inúmeros figurinos, demonstra cansaço já na primeira metade da peça. Destaque vai para seus trabalhos vocal e corporal. Diogo Lopes faz Genifer; Efigênia e uma Delegada. Diogo domina com vigor suas construções. Widoto Áquila faz a tia Dorothy. Executa boa performance; porém, me preocupo com sua construção vocal. Pois a fala que o bom Widoto criou para sua personagem cansa a ele e ao público. Pisit Mota faz o garoto Wolfgang. Seu desempenho não é de encher olhos nem ouvidos, mas não compromete o espetáculo. Poderia ter-se valido melhor da suposta cegueira do personagem - inclusive saí na dúvida se o tal era cego. Trata-se de um ator de espontaneidade e coragem reconhecidas, por outro lado, ainda aqui não conseguiu livrar o Wolfgang de um traço recorrente em suas construções – o fácil e cômodo tipo caipira. Na interpretação, o destaque mesmo vai para Rafael Medrado, a quem eu não conhecia. É surpreendentemente prazeroso vê-lo em cena. A Vírginia que ele criou foi digna do meu aplauso de pé. No geral, é audível o bom trabalho vocal dos atores, pena não ter conseguido identificar o preparador vocal. E acrescento ponto especial para atores e camareiros, pela quase perfeita relação com o tempo das incontáveis trocas de indumentárias. Miguel Carvalho, aliás, criou bons figurinos; que são imprescindíveis e, juntamente com a boa maquiagem de Marie Thauront, resultam e são responsáveis diretos pela satisfatória construção das personagens.
De outro lado, sigo afirmando que ‘Camila Baker’ não tem personalidade. E não tem estilo. A direção se furtou de compreender que espécie de “comédia estranha” é esta. E isto explica a verdadeira chuva de falas improvisadas (serão mesmo?) do tipo “parece que fugiu do micareta de Feira!”; ou, “Cê já tem outro emprego em vista?” Frases que, apesar de toda a bondade do público, já não empolgam. (com exceção do compositor Juca Chaves que se acabou de rir na poltrona vizinha). Talvez a incompreensão da verdadeira estranheza de sua criatura, faça o diretor permitir-se a determinados momentos daquilo que eu tenho chamado ‘ética do patético’, ou seja, o diretor de comédias tentando desesperadamente discutir sobre assuntos sérios ora em moda, tal qual a crítica ao politicamente correto, através do personagem de Pisit Mota quando pergunta ao outro “você é de cor? Tá aqui por causa das cotas?” Eis, exemplificado, o desarranjo generalizado do discurso do espetáculo.
A peça tem problemas de rítmo, time, compasso ou seja lá o nome que queiram os senhores. E isto já se nota em uma das cenas iniciais, como quando Camila e suas amigas pescam no rio. Os arranjos e trilha sonora de Marquinhos Carvalho ajudam, mas não o suficiente. O momento onde o rítmo funciona melhor é a cena entre Dorothy e Camila, num camarim da Rússia. O melhor momento do espetáculo é uma cena, verdadeiro número do bom non-sense, não sei se intencional, onde os personagens entrecruzam uma conversação que resulta em verdadeiros achados frasais, a ex. de “o cú é sagrado!” E “libertem o cú das convenções burguesas!” Se a montagem se resumisse somente a este esquete já valeria o bilhete pago. Mas não foi.
‘Camila Baker’ não é humor ácido nem estranho. Não mesmo. Não tem deboche nem escracho - porque para escrachar é preciso conhecer-se. É, no máximo, grotesco. Termino dizendo que na foto de capa do programa o Fernando Marinho está a cara da Débora Bloch.
Lembrete 3: voltarei a F. Guerreiro em crítica de seu outro espetáculo 'Pólvora e Poesia. Até lá, leitores!
Peça vista na sala do coro do TCA. Salvador. Bahia.
*besteirol 1 (texto sobre a estética do besteirol, H.L. Couto)
p/ Carolina.
Hedre Lavnzk Couto
segunda-feira, janeiro 9
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puts, essa peça é uma bomba!
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