segunda-feira, julho 11

'O Sapato do meu Tio', ou Uma fábula sobre a transitoriedade da vida

“Um espetáculo que fala sobre as pedras que ficam no sapato, incomodando: a fome, a luta pela sobrevivência, a convivência, o domínio da técnica, a recepção do público, a vontade de se superar e superar o outro”, uma metáfora sobre os altos e baixos da vida artística. Essas são algumas das abordagens da peça o 'Sapato do Meu Tio'.
Boa peça teatral. Teatro verdadeiro e não Jabaculê. Há muito que nosso palco baiano não contava com um trabalho tão original e de poesia tão profunda como esse Sapato do Meu Tio. Todo o espetáculo é um penetrante poema-sem-palavras. Uma carroça, um palhaço e seu sobrinho-ajudante, querendo também ser palhaço, diante da vasta estrada da vida! Uma receita simples, de enredo cativante, regada a muito jogo. Jogo! Como pede o bom teatro. A direção é de João Lima; o roteiro - concebido através de improvisações ao longo do processo de criação - é de autoria dos próprios atores Alexandre Luis Casali (o sobrinho) e Lúcio Tranchesi (o Tio).
Em tempo de vacas magérrimas, como esse atravessado pelo teatro, diante da esmagadora concorrência ditada pelos meios massificadores de entretenimento, montagens teatrais como esta, de Teatro Essencial, são dignas de entusiasmado reconhecimento. Atores e direção, salvo raras exceções, usam unicamente técnica, talento e criatividade para envolver a platéia. O palco do Teatro XVIII foi outra feliz escolha. E, sobre ele basta a propícia sonoplastia de Jarbas Bittencourt, além de uma espécie de carroça, dois bancos, algumas bananas e outros poucos objetos para estabelecer a empatia com público. Empatia que poderia ser plena se não fossem algumas outras opções não tanto acertadas: o pano azul escolhido pelo cenógrafo Agamenon de Abreu para realçar o fundo e as laterais do palco, destoa muito da proposta cromática da boa iluminação de Fábio Espírito Santo, que bem poderia ter sugerido ao colega cenógrafo um pano de cor quente. Ainda em relação ao espaço, dada as limitações físicas e técnicas do teatro, as ações deveriam ocorrer somente no palco. Nos momentos onde o personagem-palhaço-sobrinho invade a platéia e se oculta em um local estranho simulando uma ida a outro lugar qualquer, temos uma sensação de resolução-forçada pela direção. Da mesma maneira, a coxia tem sérios problemas, pois, não funciona quando o personagem-palhaço-tio precisa ocultar-se.
Outra escolha inadequada foi usar o projetor de áudio-e-vídeo dentro de uma peça cujo verdadeiro brilho se encontra na pura teatralidade. Qual a função desse projetor? Concretamente ele apenas causou mais uma sensação de forçação de barra. E feriu o lirismo da peça. Parece que alguns diretores baianos estabeleceram indiscriminadamente o estatuto do “estranhamento gratuito”. Num espetáculo como esse não cabe intervenções de exagero barroco; sua essência é a ilusão, qualquer tentativa de “estranhamento” quebra o brilho da ação clownesca.
No que diz respeito á interpretação, ambos os atores desempenham seus papeis com segurança e entrega. Além da memorável sensibilidade em preencher poeticamente ações aparentemente banais – como na cena em que trocam tapas singelos, simbolizando a amizade recíproca - demonstram excelente preparo físico e habilidades diversas, que vão desde o perfeito domínio no uso das pernas-de-pau a execução de encantadores números de equilibrismo. No entanto, essa agradável mistura lúdico-poética, que chega a lembrar a arte do teatro de rua, sempre pode exigir um pouco mais de quem se predispõe a experimentá-la. Desse modo, faltou um pouco de malícia na interação dos palhaços. Mereciam algo mais de reflexo e irresponsabilidade em sua construção. Uma pitadinha mais de refinamento, leveza nos gestos, para equilibrar o tempo-rítmo e cativar a platéia. Lúcio Tranchesi percebe essa necessidade e esboça um complemento, mas quando o faz, por vezes falta habilidade e cai no exagero.
Contudo, a interpretação é o ponto forte do espetáculo. Quem comete o maior pecado é a direção; quando não percebe que o espetáculo deveria comportar no máximo a primeira hora do roteiro. Exatamente a primeira hora do roteiro é o que deve durar a peça, quando alcança uma hora e quarenta minutos. O espetáculo tem estrutura cíclica, trata da transitoriedade da vida: deveria ter acabado quando o aprendiz ganha o nariz e o sapato do mestre-palhaço. Em uma hora já disse tudo que tinha a dizer. Prolongar isso é apelar desnecessariamente à redundância e cansar um público habituado com escraxadas comédias de texto, colocando em risco um trabalho consistente e gratificante de se vê.

Espetáculo visto numa quinta-feira de 2007. Teatro XVIII, Pelourinho.

Hedre Lavnzk Couto

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