segunda-feira, julho 11

No Outro Lado do Mar

Ao término do espetáculo, já fora do Teatro Martim Gonçalves, um desses amigos insuportáveis perguntou-me: ‘Hedre, em que estética se enquadra essa montagem?’ E eu lhe respondi: ‘eu não sei, William. ’ Outro amigo, desses mais pacíficos, interrompeu-nos: ‘Que discussão mais besta, vocês não perceberam ainda que vivemos no teatro a época do [Misturalismo]?’ E eu, já distraído, e acendendo meu cigarro, concordei: ‘Pode ser, Yoshi!’ E ainda ali, permanecemos os três, por uns 10 minutos, elucubrando a respeito de Estética, Estilo, Método, Texto, Pureza, Sujeira, e, claro, principalmente sobre o tal do Misturalismo, descoberta nobélica do rápido amigo. Sem mais delongas...
O texto de ‘No Outro Lado do Mar’ é de autoria do angolano José Mena Abrantes. E confesso que sei pouco sobre ele e sua obra, embora já tenha lido uma outra peça sua chamada ‘Amesa’. Ao que parece, pelo pouco material que tive acesso (a peça que li e a peça que vi) o escritor tem predileção por escrever sobre o seu habitat, ou seja, sobre a sua terra angolana, sobre o Povo angolano, sua história, sua personalidade, suas vicissitudes e tragédias, seu inconsciente coletivo, o duro e belo vigor de uma identidade popular africana. Abrantes faz uma honesta tentativa de transformar os temas e personagens de seu país em sentimentos e arquétipos universais, mas, esbarra suas pretensões dramatúrgicas numa contundente falta de técnica. Temos a impressão nítida de que ele tem sensibilidade, boa capacidade de observação, de investigação e pesquisa, contudo, ainda não consegue selecionar com destreza, em meio a vasta gama de riqueza cultural humana que dispõe Angola, aquele material que de fato teria uma maior vocação dramatúrgica. Aliado a essa constatação, a deficiência técnica desse escritor fica mais visível na fragilidade formal de suas obras, para simplificar, é como se ele tivesse algo a dizer, mas, não sabe nem como dizer, nem como revelar. Por outra, falta-lhe habilidade de narrativa, falta-lhe como se diz, carpintaria dramatúrgica. Mas isso pode ser conseqüência do tempo, a prática e a dedicação e o hábito instrumentalizam os dramaturgos. Genialidade é inata, mas competência pode ser adquirida.
No Outro Lado do Mar é um texto ruim. É um vomitório agonizante. Tanto é que se vocês me indagarem a sinopse ou o argumento, me perguntarem qual é a história que a peça conta, não saberia responder. Alguns poderão me dizer, ‘mas essa é uma característica dos textos contemporâneos, que usam e abusam da fragmentariedade e entrelaçamento dos diálogos, que confundem tempo e espaço, que não tem compromisso com narrativa linear, que o expressionismo, o surrealismo, principalmente os cinematográficos, enterraram de vez as lições de “A Poética” de Aristóteles. Que Abrantes é um visionário e eu um conservador.’ Mas este não é o caso, o texto em si é fraco, justificadamente até, dada a atecnia dramatúrgica do autor. Em suma , o texto de No Outro Lado do Mar é uma almôndega confusa e mórbida, recheada de lamentos que não conseguem alcançar os nossos apressados ouvidos ocidentais.
E meus amigos, quando o texto é ruim, a direção tem de destruir o frágil primeiro autor e se transformar num novo e melhor autor: o nome disso é encenação. Este foi o ato humano que não existiu. A direção de No Outro Lado do Mar é da diretora Suelma Costa. Uma direção apagada, tímida e conivente com as fragilidades do dramaturgo. Ela devia ter assumido a responsabilidade, a coragem de estuprar o autor, mexer no conteúdo, na narrativa, na intensidade, na cor e na distribuição dos diálogos, na qualidade dos personagens, criar sua própria linguagem visual, enfim, se fazia necessária uma reescritura cênica, a diretora não a fez. Faltou-lhe personalidade e coragem para assumir uma postura de poeta criadora de metáforas, ela se contentou em ser uma mera repetidora do dramaturgo. E aqui posso eu aproveitar um pouco daquela discussão do ‘Misturalismo’. Acho que tem dois tipos disso: Primeiro o Misturalismo desempenhado por uma direção que conhece bem diferentes correntes e estilos teatrais, e a depender do objeto cênico que se está construindo, verificar se é bem vinda a mixagem de tendências, se for o caso realizando-a. Isso quando feito por quem conhece e sabe fazer, o resultado é satisfatório. Segundo, há o mituralismo de quem não sabe de onde vem o vento e nem pra onde ele vai, ou seja, aquela direção que mescla tudo, sem conhecer nada e, faz o já citado por mim, samba do maneca cego. Dito isto, quero ressaltar que a direção fez uma opção que me chamou a atenção especialmente: uma vez a peça levada no Teatro Martim Gonçalves, palco a italiana, cena frontal, a diretora preferiu, certamente numa tentativa de conferir ares de espetáculo de estética experimental, bem como deixar o público mais próximo à ação, estabelecer a platéia em cima do palco, no formato FERRADURA (algo parecido com uma semi-arena) circundando a zona cênica. Contudo a despeito dessa aproximação física, os atores-personagens agiam como se existisse uma espessa quarta parede, fulminando a intenção de proximidade (imagino eu não só física) com o público. A idéia teria sido pelo menos coerente, se a encenação tivesse abdicado da quarta parede. Bom, esse é um exemplo clássico do misturalismo, quando se mistura coisas sem prever ou perceber o prejuízo do ato impensado. A diretora trilhou o errôneo caminho do texto, e assim, no geral manteve-se bem apática quando a concepção e coordenação dos demais elementos constitutivos do espetáculo. O mais curioso é que Suelma Costa é aluna diretora formanda pela Escola de teatro da UFBA, e teve como orientador o eminente professor Dr. Gláucio Machado. Há algo de capenga no reino do Canela. E ainda acham ruim quando eu digo que a Escola de Teatro da UFBA acabou. Mas vamos em frente...
O cenário da própria Suelma Costa e da Ana Maia Soares, trata-se , pelo menos tive essa impressão, de uma superfície coberta de areia, uma praia ou algo do gênero. Tal cenário tornou-se praticamente supérfluo pela forma como é trabalhado pela luz, pela opção da platéia disposta em FERRADURA e pelas marcações e movimentações impressas pela direção. Devo dizer, que uma das coisas mais difíceis em teatro é encenar nestes formatos de arena, semi-arena, ferradura e Black bloxe. Por vezes é melhor fazer só o que se sabe, já me dizia um diretor alemão. A iluminação de Aldren Lincoln e Everton Machado, no todo aberta, é muito deficiente. Poderiam ter optando por uma luz expressionista, fechando mais, recortando o palco entre ambientes oníricos e outros crus, o resultado talvez tivesse sido melhor. O figurino da direção e do elenco, é insignificante. A trilha sonora é roliudiana.
No tocante à interpretação, sempre acho que os personagens que vejo no palco são em boa parte o reflexo da capacidade de dirigir ator, por parte dos diretores. Pode parecer uma frase de lugar comum, mas esse detalhe técnico faz toda a diferença. Ana Maria Soares, num ou noutro momento, conseguiu me causar interesse em cena. Possuindo uma dramaticidade latente, sentia que por vezes aflorava algo que vinha de suas entranhas, mas isso por poucos segundos, e logo aparecia o geral dessa sua atual performance, que é ainda muito aquém do que ela pode fazer. Eu confesso que quero trabalhar com Ana Maria um dia desses. Everton Machado não conseguiu me causar interesse em momento algum. Eu não sei qual o problema de Everton, se ele é sempre azaradamente mal dirigido ou se ele precisa estudar-praticar mais. Percebo que ele tem vontade, percebo que ele gosta do que faz, acho que melhorará muito no dia em que trabalhar com um bom diretor de ator. Eu sentirei muito prazer ainda em escrever bem sobre Everton, e não tenho dúvida que ele me dará essa oportunidade. Essa investigação vocal que Daiane Leal e Heloisa Jorge fizeram conferiu ao personagem do Machado uma voz (ou como diria a fonoaudióloga Ana Ribeiro em sua distinção voz para atores e falas para personagens) uma fala robotizada, insegura por mal trabalhada, de um volume oco e não humano certamente. A investigação corporal com Aldren Lincoln também não ajudou. Os atores conceberam partituras corporais muito retas e simplórias para seus personagens, fragilizando-os mais ainda.
No Outro Lado Mar é uma bela frase. E sinceramente acho que pode ser melhorado como espetáculo. O autor diz na peça que ‘a intimidade é a morte dos sentimentos’, não acredito nisso não. A intimidade é a melhor coisa que pode acontecer aos sentimentos. Aliás, os sentimentos só podem mesmo surgir com a intimidade. Por outro lado acredito que a vaidade e a incapacidade de ouvir nos torna pessoas bem menos interessantes.

Espetáculo de Formatura em direção teatral de Suelma Costa, orientado por Gláucio Machado

visto no teatro Martim Gonçalves, ETA-UFBA, canela

última sexta feira de fevereiro de 2010.

Hedre Lavnzk Couto

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