Em 10 de dezembro de 1896, no Théâtre de L’Oeuvre, estreou certa farsa colegial, de certo jovem boêmio parisiense Alfred Jarry. A peça era Ubu Roi. E, já ao final daquela mesma noite, o espetáculo havia produzido tumulto tão contagioso, como de há muito Paris não experimentava, que se podia mesmo afirmar que a primeira fala do protagonista – “merde!” – estilhaçou o conforto da plateia.
Nascia ali, diante dos olhos do público atônito, o teatro de vanguarda do século 20. Ubu Roi era “cem por cento teatro, e, no limite da realidade, criou outra realidade com o auxílio dos símbolos”.
De um pulo para os nossos dias... Ocorreu na última quinta-feira, 24, em Salvador-Bahia, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, às 20 horas, a estreia do espetáculo ‘Outra Tempestade’, resultante da edição 2011 do TCA-Núcleo, com direção do cubano Luis Alonso. Nas palavras do diretor, seu atual trabalho visa “revisitar os personagens clássicos da dramaturgia shakespeariana, numa parábola que evidencia (?) o processo de formação da miscigenação do povo brasileiro”. Parece enunciado de bula de remédio, mas, vamos em frente!:
Lembro-me que na faculdade de direção teatral, existia um professor, de literatura dramática, que não se cansava de aconselhar-nos quanto à importância de se concluir o Curso conhecendo todas as peças de W. Shakespeare. O pobre, no entanto, esqueceu-se de avisar aos alunos que - conhecer - de há muito não é garantia de sucesso.
Do outro lado, está um grande número de ‘jovens’ diretores que abominam, e desprezam tudo que vem historicamente carimbado com o rótulo de ‘clássico’. Inclusive, é claro, a dramaturgia clássica. E aqui, novamente me recordo de outro saudoso professor, que nos ensinava que para criar o ‘novo’, o diretor necessita dominar o ‘velho’. Ou agora, eu, parafraseando Proust: ‘Só se bem destrói aquilo que bem se conhece’.
Pois bem, essa ‘Outra Tempestade’ de L. Alonso não cumpre sua promessa de revisitar personagens clássicos shakespearianos. E isso por vários motivos facilmente observados: a um, a presente encenação parece mais desconhecer do que desconstruir. Ou Alonso conhece Shakespeare (teoricamente) e, (cenicamente) não consegue revisitá-lo, ou, não conseguiu revisitá-lo porque o desconhece.
Simplificando: para poder extrair, com algum sentido, personagens de uma obra e coloca-los noutro contexto dramático-cênico, primeiro faz-se indispensável conhecer bem (ter estudado, ter lido direitinho, sabe?) essa obra [ou esta(s) peça(s)], simplesmente porque os personagens, sem a substância dramática interna (da peça), não existem.
E é justamente por não entender, por não respeitar ou por fazer pouco dos conflitos dramáticos de Hamlet; dos Macbeth; de Shylock e de Caliban e cia, que a ‘Outra Tempestade’ não passa de uma ‘chuvinha passageira’. É chuvisco no molhado do reiterado mal feito do atual teatro baiano. Luis Alonso desprezou a força, a beleza, a organicidade dos personagens de Shakespeare. Deu de ombros para o verdadeiro tratado sócio-étnico-político-cultural-humano que é a obra do bardo inglês. E nos vem a pergunta: se tem tanta aversão pela obra do dramaturgo, a ponto de ignorar completamente seu sentido, por que usá-la? Não seria mais honesto escrever os seus próprios textos?
E no meio desse samba-do-maneca-cego que é a torta visão de Shakespeare por parte da encenação, ainda se disse que houve o tal do objetivo de utilizar o autor como sustentáculo dramatúrgico na construção de uma parábola ‘evidenciadora’ do processo de miscigenação do povo brasileiro. Ok. Ok. Vejam, leitores, e sei que aqui muitos artistas me leem, o cúmulo do estelionato artístico: o rapaz coloca um Macbeth negro ( Jefferson Oliveira) e uma Lady M. branca (Simone B.) e mais uma sonoplastia com tambores, teclado e violino e mais Heloísa Jorge desfilando de uma extremidade à outra do palco entoando cânticos onomatopeicos, e quer-me dizer que se está apresentando um alto trabalho sobre o ‘sincrético’ processo de miscigenação de um povo? Palmas. Palmas. Palmas. E flores!
Com exceção de Diana, que salva-se (porque está na sua zona de conforto como intérprete), o elenco encontra-se no todo penosamente descolocado – inclusive o diretor teve oportunidade de realizar audições com praticamente a ‘nata’ dos atores da Bahia, e acabou escolhendo o que escolheu... nisso pelo menos Alonso foi coerente, se é que me entendem – no geral, muitos gritos, muitos gritos. A tentativa do ator Fernando em satirizar o famoso “ser ou não ser?”, é desoladora, sobretudo para quem estava investindo sua sexta-feira à noite. A cena do casal Macbeth... Deus nos valha, leitores, Macbeth certamente não dorme: durma com um barulho desses, meu caro Macbeth.
A direção usa muito mal a caixa cênica. E o palco à italiana da Sala do Coro é impiedoso em descortinar as fragilidades da encenação. No mais, a peça não consegue comunicar nada ao público. Transmitir? Como, se sua simbologia é obscura e oculta? Qualquer decodificação (embora, como perceberam, não acredito que ali existisse alguma semântica presente) se torna impossível. E quaisquer mensagens, pretendidas dentro da cabeça do diretor, restaram nulas.
Entretanto, existem dois pontos positivos: graças a Deus, Alonso não quis montar mais um daqueles ‘estelionatos’ míticos e místicos da – para alguns – inesgotável temática da seca nordestina. Além disso, há que se reconhecer que a encenação tenta promover uma busca por devolver aos palcos a ‘teatralidade do teatro’. Pena que o esboço de teatralidade que foi resgatado esteve a serviço de um trabalho perturbado e truncado.
Queria eu dizer desta peça aquilo que Henri Ghéon (L’Art du Théâtre, 1944) disse ao enaltecer Ubu Roi: “era cem por cento teatro. No limite da realidade, criou outra realidade com o auxílio dos símbolos”.
Ps: a pompa do folder deste espetáculo, num acintoso desperdício de uma verba já sabida parquíssima, já nos diz tudo.
Ps: continuo aqui batendo, sim, na mesma tecla: a grande maioria dos artistas de teatro de Salvador, atualmente, são melhores escritores do que realizadores.
P/ Carol.
Hedre Lavnzk Couto
sábado, novembro 26
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É uma lástima receber este texto, outra é o papel que o senhor se presta, diretor formado,(?) dono de uma inveja e frustração sem pares, que poucos, até mesmo os mais intelectualmente prejudicados que você, (que usa sua parca articulação, no melhor estilo copiar e colar, pra falar mal das pessoas que realizam o teatro na nossa cidade), tem a fragilidade de expor. ps. Eu vi Os sete gatinhos em 2008 :) (Parabéns!). Maria João
ResponderExcluirBelo comentário, M. João. Volte sempre!
ResponderExcluirHedre Lavnzk couto.