sábado, outubro 22

Crítica do espetáculo ‘Diário do farol’

Vamos torcer para que minhas palavras se revelem adequadas, não é? O espetáculo ‘Diário do farol’ é uma adaptação dramatúrgica (de Amarílio Sales) e cênica (de Fernanda Paquelet) inspirada em livro homônimo do consagrado escritor baiano João Ubaldo Ribeiro. Contudo, a despeito da grande empolgação decorrente das merecidas intenções de se homenagear a Ubaldo, trata-se de uma adaptação acanhada, paupérrima em teatralidade.

À primeira vista o espetáculo traz a fábula de um personagem ‘encarcerado’, sozinho no interior de um farol, com suas lembranças, suas fantasias, seus fantasmas, e a materialização das histórias narradas em seu diário. A narrativa nos induz a crer que, esse homem, após ter atravessado algumas vicissitudes pela vida, decidira vingar-se daqueles que elegera como culpados por suas desgraças, passando então a viver despido de quaisquer obrigações para com a ética ou a moral.

COMO ENCENAR UM DIÁRIO?

O protagonista, vivido por Amarílio Sales, divide com o público os pormenores de sua vida. E todo o conteúdo desta verdadeira autobiografia, em forma de diário, vem à tona, vai se materializando no palco. O personagem começa contanto sua história desde os tempos de tenra infância. O quotidiano doméstico da vida familiar, o convívio com os pais, numa fazenda. O machismo e o sadismo da figura paterna, que desdenha a esposa e humilha e atemoriza a personalidade do filho, ainda em formação. A morte da mãe. O novo casamento do pai. Que culmina com o planejamento e execução do fruto desse matrimonio, a pequena irmã, considerada pelo protagonista uma bastarda, adversária. A expulsão da casa paterna. A revolta. O aprofundamento das patologias de sua personalidade. A descoberta do prazer em manipular e ludibriar as pessoas. Sua entrada para o sacerdócio. A prática reiterada da luxúria e da corrupção. O surgimento da grande paixão por uma de suas fieis. A decepção de ser preterido. O engajamento com movimentos políticos armados, enfim, toda a deformação de uma alma atormentada pelos descaminhos da vida, ganha relevo sobre o tablado.

Mas são tamanhas as maquinações e a confissão doentia do personagem, que, por diversas vezes o público certamente indaga: ‘será que realmente ele viveu tudo isso que vem narrado no diário, ou será tudo apenas fantasia de um estado emocional enfermo, fruto de profunda frustração e solidão?’ Na verdade, muitos saíram com essa dúvida. Aquilo que o protagonista narra são registros de fatos reais, ou ao contrário, uma obra de ficção criada por ele?

A CONCEPÇÃO...

O conflito do protagonista, ou a narrativa do diário, como queiram, é delineado em distintas dimensões cênicas. Podemos dizer que existe a dimensão do presente, ou seja, quando o personagem simplesmente narra à platéia (lendo o diário ou, quebrando a quarta parede e falando diretamente às pessoas) os registros; um plano das lembranças, onde ele contracena com o pai, ou com a mulher objeto de sua paixão; e uma atmosfera da fantasia-alucinação, na qual ele contracena com o fantasma da mãe. Existe em dado ponto, um bom momento dramático, quando juntam-se simultaneamente todas essas dimensões conflituosas, p.ex., o personagem contracena com o pai, e ao mesmo tempo está abraçado ao fantasma da mãe, e ainda escuta vozes de outro plano, de forma que o espectador tem a possibilidade de entender melhor o teor da confusão mental do protagonista.

Também se consegue um efeito interessante ao fazer com que o personagem de Amarílio, já em idade madura, realize a transição do plano do presente e empreenda imediatamente contracena com o pai, em cenas ainda de sua infância. Isso porque, já velho, ali revivendo e sofrendo com o sadismo paterno, o personagem evidencia, ainda mais, a vulnerabilidade porque passava em criança, diante da repetição de tal situação.

Também aqui a escolha do Espaço Cultural Barroquinha abrigou satisfatoriamente o ar imaginado para o espetáculo, serve bem à sugestão de um ambiente de velho farol. Entretanto, tenho dúvidas se a disposição cênica em forma de ‘quadrado’ serve para conferir vigor à peça. Talvez servisse se explorada com mais ousadia, com mais criatividade e coragem. E se a interpretação dos atores fosse coletivamente magnífica. Porém, não vou me aprofundar hoje nesta questão. Falarei brevemente da iluminação. Qual é o objetivo de uma luz aberta em momentos de incontestável necessidade de valorizar o intimismo? Outra coisa: a reiterada quebra da quarta parede pelo personagem de Amarílio. Para que? Em alguns momentos, cabe. Mas da forma exagerada e marcadinha como foi colocada, compromete. Há enorme déficit de teatralidade neste espetáculo, o único momento de verdadeira teatralidade ocorre em uma das cenas finais, onde um estupro é bem bolado com efeitos lúdicos, usando-se para tanto uma pequena boneca.

O TRABALHO DOS ATORES...

O talento de Amarílio Sales, embora não por vaidade pessoal, engole a todos, e, por isso, quando o espetáculo conta uma hora, ele já está cansado. Mesmo assim leva o seu personagem com dignidade e beleza até o final. Amarílio é dos atores que vale pena assistir no teatro de salvador. Bom trabalho corporal. Pela sobrecarga, a voz aparece um pouco sacrificada.

Tatiana Carcanholo tem o seu melhor momento na primeira entrada. É uma atriz regular, o que nos atuais tempos de vacas magras, significa que, se melhor conduzida poderia ter rendido muito mais. O trabalho corporal que ela realizou para compor esta sua personagem é muito fraco. Vai à mesma medida o trabalho vocal, uma construção horizontal, perpassando pela tentativa de obter uma suavidade que caiu em artificialidade. Isso compromete o espetáculo, o cansaço de Amarílio que o diga.

Naiara Homem interpreta a si mesma. O que dizer? Há sim: não entendo a proposta de sua caracterização plástica, buscou-se sugerir uma entidade meso-aquática-polar?

Daniel Becker é o cara. É o que mais compromete o espetáculo, tanto individualmente como em seu conjunto. Becker, neste trabalho, se mostrou uma casca, ele peca, não consegue trazer a necessária austeridade para seu personagem. Além disso, não pensa em cena, vomita o texto. E explora pobremente o traço de sadismo evidente e necessário ao seu personagem. Cito como exemplo aquela cena de extremo sofrimento, onde expulsa o protagonista pela morte da filha, ali faltou consistência em seu trabalho interior, neste, como em outros instantes de sua contracena com o filho, Amarílio teve que suprir, unilateralmente, a intensidade que a cena pedia. Outro problema que Daniel apresenta está em sua movimentação física, vazia, ou sem sentido e repetitiva, a ex. do que ocorre na primeira cena.

UBALDO, PAQUELET E AMARÍLIO...

Congratulo Ubaldo por ser um grande baiano, um orgulho para nossa literatura e para a nossa Bahia. Gostaria de ver muito mais textos seus aqui encenados. Também parabenizo a Amarílio e Paquelet pelo projeto, que embora eu considere artisticamente fragilizado, tem dignidade. Quero ver com muito mais freqüência trabalhos de ambos sobre os palcos. Ainda preciso ver ‘Sarjento Getúlio’, de Ubaldo, Gil Vicente e Betão.

Hedre Lavnzk Couto

p/ Carolina

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