sexta-feira, outubro 21

Crítica do espetáculo ‘A voz do provocador’

Um momento memorável. Assim pode ser definida a sensação inconfundível de ouvir as implacáveis provocações de Antonio Abujamra, ao longo de pouco mais de uma hora, em plena noite de sábado, 15, no Teatro Sesc Senac Pelourinho. Abujamra é história viva do teatro, da televisão, do cinema, e da arte pensante do Brasil desde a segunda metade do século vinte. É ele membro de uma inquieta e talentosa geração de homens de teatro que, até os dias de hoje, ainda representa ousadia, originalidade, subversão, provocação. Embora ele próprio e os colegas admitam que tal estigma ainda perdure muito em conseqüência da apatia e mediocridade da esmagadora maioria daqueles (artistas de teatro) que vieram depois deles.

Aí, o velho Abu, após décadas de consagrada prática teatral, de personagens de telenovela emblemáticos, e de inspirar, descobrir e formar boa parte daqueles que realmente podem pleitear o prenome ‘artista’, chega à idade madura escolhendo desempenhar um personagem instigante: o velhinho intelectual inconseqüente e provocador. Tal qual um gótico bobo da corte, deste reino de abobalhados tropicais, Abujamra, um observador perspicaz do cotidiano, profundo conhecedor da história humana, da filosofia, da literatura dos quatro cantos do planeta, transformou seu arcabouço cultural em munição corrosiva, e sua língua em metralhadora ferina de longo alcance. E como às crianças, aos velhos, e aos ‘bobos’ é permitido troçar das feridas das gentes zangadas, das doenças da vida, e das nossas pequenas (des) honestidades cotidianas, Abu escarra e escarnece nessa e dessa capenga [tragicomédia de costumes], que é essa nossa inócua aldeinha global, boçal.

Há alguns anos, Antonio Abujamra estreou na TV pública um formato curioso de programa de entrevistas. Em ‘Provocações’ Abu recebe convidados que são oriundos dos mais diversos matizes sociais. Diante do entrevistador sentam-se poetas, esportistas, donas-de-casa, políticos, empresários, religiosos, desocupados, cidadãos, indigentes, provocados e provocadores. Até aí, nada demais, se não fosse a incoercível originalidade da capacidade criativa do veterano diretor teatral. Tudo em ‘Provocações’ é feito para provocar, para incomodar, para quebrar o conforto, para causar estranheza (olha aí, as lições de Brecht, Abu!) para fazer com que o convidado seja, pelo menos uma vez na vida, ele mesmo; para fazer com que o telespectador desperte para o quanto é idiota permanecer anestesiado durante 30 minutos diante de um aparelho de tv, ao passo que poderia empregar este tempo de maneira útil, viva, criadora!

No estúdio tudo conspira para provocar. A plástica causa de cara um desconforto visual. No cenário, cores cruas e quentes. Na luz, que em verdade faz uma meia luz, reproduzindo uma penumbra, cores frias, de modo a imprimir uma atmosfera psicológica de clandestinidade. Na sonoplastia vozes, muitas vozes, falando, reclamando, ao mesmo tempo, proporcionando uma agitação auditiva. Além disso, reina um jogo de câmeras, de ângulos, de edição, bem característicos de quem viveu e praticou os anos de ouro da televisão improvisada e espontânea, anterior a chegada do vídeo tape. À câmera nada escapa, sua missão é buscar em plano-detalhe a textura, as características corporais, flagrar as mais contidas manifestações emocionais dos convidados, prevê suas explosões diante das provocações reiteradas, e seu ímpeto de também provocar. E tudo isso aliado e envolvido pelo ingrediente principal do programa, o olhar gélido dos dois velhos olhos negros de Antonio Abujamra, o conteúdo mordaz e irrepreensível de seus questionamentos, o cinismo peculiar da cadência com que profere a seqüência das palavras que encadeiam as perguntas. O deboche didático de um gênio, um convite nada convencional para que as pessoas reflitam sobre sua postura habitual, sobre que tipo de dias estão vivendo e que tipo de sociedade estão ajudando a construir.

Notem que me estendi, amigos, espero que não o bastante para terem desistido da leitura. Mas foi por um importante propósito, que de início optei por tecer alguns comentários do formato televisivo ‘Provocações’, uma vez que o projeto ‘A voz do provocador’, de Antonio Abujamra é a versão teatralizada dessa empreitada.

'A VOZ DO PROVOCADOR', ESPECIFICAMENTE

Abujamra desembarcou em salvador neste mês de outubro com 79 anos de idade. Trouxe-nos um trabalho que denominou de ‘uma aula-espetáculo’. Certamente eu tenho algumas ressalvas a fazer sobre esta sua ‘obra’. Mas, antes de qualquer coisa, preciso registrar que sou um admirador dos trabalhos e bagagem deste artista. É possível se aprender muito com ele. Ter Abujamra no palco, em si, já podemos considerar uma situação espetacular. De outra parte, digo que o folder, como a maioria dos folders de espetáculos que vemos por aí, nos promete e fala de muita coisa cuja presença no palco jamais se vê. Mas a intenção de se propor uma aula- espetáculo e correr os quatro cantos do Brasil, levando-a para milhares de espectadores sem dúvida é interessante e, para a sobrevivência do teatro, útil sob vários aspectos.

O TEATRO DOS DEBATES...

A tese desta aula-espetáculo é sensível e sobremaneira sintonizada com a atual realidade dos fatos de uma sociedade contemporânea complexa. Abujamra, que assina o texto, a concepção, a direção e atua, em momento de feliz clarividência afirma a certa altura que no presente contexto das coisas, o teatro apenas resgatará o seu lugar de verdadeira arte da inter-subjetividade, acaso sirva como palco de debate de idéias, ao contrário senso de um mero espaço contador e reprodutor de histórias. Em outras palavras, Abu está na defesa de um teatro que não seja unicamente entretenimento, embora também possa associar-se a esta função, mas para ele, o espetáculo teatral deve, sim, ser vetor de reflexão, apuração, transformação e balanço constante dos paradigmas da sociedade. O objeto artístico teatral deve ser vivo (além de grotovsky), proporcionando uma mútua troca e crescimento entre os sujeitos criadores e os sujeitos espectadores – que obviamente, neste contexto, também serão criadores; os artistas e o público devem enfrentar com sintonia e crueldade (além de Artaud) a patente crueldade de determinados temas, tabus e realidades. Experimentar, evoluir, viver, o teatro pode e deve ser verdadeiramente inserido nesta dinâmica.

Concordo. Em todo caso, manifesto divergência às lições de Abujamra, na medida em que de minha parte acredito também se fazer possível realizar o necessário debate sobre o palco, mesmo quando se opta por contar histórias. Não podemos esquecer que a boa dramaturgia certamente nos oferece histórias dotadas de consistência e profundidade, capazes de auxiliar a contento na condução de diversas linhas de debates. Ao meu ver, tudo dependerá da qualidade da fábula, da pertinência das escolhas, da sensibilidade da encenação, do talento dos atores.

Mas entendo perfeitamente o cerne do que está sendo constatado por Antonio Abujamra. Assim como ele, já algum tempo venho dizendo que o teatro como o vemos hoje, parece até óbvio, mas muitos artistas fundamentalistas não admitem este ponto de vista, o espetáculo ou a peça de teatro tal qual o concebemos e apreciamos no presente, desaparecerá em poucas décadas. Depois de flertar, embriagar-se e ter repetidas overdoses com altas doses de pirotecnia dos atípicos recursos do cinema e da televisão, ou mesmo do grande show business, o teatro vem já há tempos manifestando uma tendência global pela retomada da estética da ‘essencialidade’, ou seja, cada vez mais artistas, produtores e público, têm caminhado na direção de um teatro sustentado na consistência temática, na economicidade de efeitos alheios ao talento dos atores e, sobretudo, têm-se buscado fazer uma arte teatral capaz de promover com o espectador uma interatividade de cunho mais utilitário do que supérfluo.


A DISPOSIÇÃO ESPACIAL...

O que se faz necessário para a realização de uma aula? Alguém que tenha experiências a compartilhar e outro(s) que queria(m) ouvir, e aprender, trocar etc. Para a realização de sua aula espetáculo, Abu precisou apenas da presença e (interação?) da platéia. À direita baixa do palco situava-se uma mesa e uma cadeira, que abrigava alguns livros e anotações do ator, de modo que Abujamra já no início do espetáculo lá se sentou levantando-se apenas ao final para receber os aplausos. Ao fundo central, situava-se uma tela onde eram projetadas imagens e vídeos que iam sendo solicitados conforme o andamento da aula-espetáculo. De sua mesa de trabalho Abu deu curso ao roteiro temático que trouxera para provocar o público soteropolitano. Com a luz de platéia na maioria do tempo ligada, o ator falava o tempo todo na direção do público. Ali leu passagens de filósofos, poetas, dramaturgos, contou algumas de suas experiências profissionais, algumas anedotas sempre com muito humor (ácido de sempre) e, sobretudo, Abujamra optou por fazer uma ponte direta com materiais que foram destaque ao longo da história de seu programa de entrevista ‘Provocações’.

FRAGILIDADES... OU, ATÉ ABUJAMRA FALHA, E CONSEGUE SER PIEGAS

Realmente esta aula-espetáculo corre o sério risco de ser vista como obsoleta e fraudulenta quando incorpora no seu bojo diversos fragmentos já há muito vistos e repetidos em cadeia nacional de televisão pública. Embora Abujamra sempre brinque que seu programa conta apenas com meia dúzia de telespectadores, o real número é bem mais significante. Talvez o veterano homem de teatro tenha sido descuidado ou presunçoso em demasiado em não proceder a elaboração de um material verdadeiramente inédito. Este é um ponto lamentável, até decepcionante.

Outra fragilidade é o fato de haver uma promessa de aula-espetáculo, ou seja, implicando a expectativa natural de uma plena interação com o público, na realização de um grande debate, que caminharia quiçá para uma mágica direção inesperada, improvisada, enfim. Ei, Abu isso não acontece, e você sabe. O espetáculo fica vergonhosamente engessado. E ao passo que o formato e a proposta da aula-espetáculo têm potencial para possibilitar uma interação sem precedentes entre artista e público, infelizmente, não é o que se vê. O que ocorre é um simulacro, uma fraude primária de interação, através de um roteiro ditadinho que trás os momentos onde se tenta forjar que chegam até Abujamra bilhetinhos supostamente oriundos do público, por onde questionariam o ator sobre perguntas sem relevâncias alguma, para nada ou para ninguém. Pra que isso? Se realmente Abujamra sabe provocar e adora ser provocado, por que agiu com tal despotismo, ou insegurança, por que não se arriscou a interagir e canalizar as desconhecidas ações e reações que certamente emergiriam de maneira inesquecível e catártica do público entre si e para com ele? Abujamra chegou a salvador dizendo que trazia na bagagem uma aula-espetáculo sincera, mas na verdade trouxe um ‘monologuinho’, requentado e costurado às custas dos arquivos do seu programa de TV. Ao artista cabe ser honesto, ainda mais, quando se ufana a grandioso. Contudo, respeito-o muito, e afirmo que a despeito dos defeitos e das incongruências contundentes porque passa esta aula-espetáculo, ainda assim seria importante que cada brasileiro pudesse ter a oportunidade de vê-la.

O PONTO POSITIVO...

O ponto positivo é que tal iniciativa pode certamente influenciar artistas e público para visitarem mais esse formato cênico. Num futuro de médio prazo, a única esperança de o teatro não entrar em completo desuso, será a de seguir a estrada de transformar-se em um espaço ativo, onde artistas-pensadores e público, também pensante, compartilharão debates e experiências acerca da vida, e da sociedade.
O que seria sim, uma alternativa para o palco, para o teatro num momento como este que vivemos (principalmente em Salvador) de completa falta de capacidade artística, talento, criatividade, ousadia, consistência intelectual. Nossos artistas locais (salve-se aí as honrosas exceções) são medíocres intelectualmente, e isso é lastimável; e não possuem nem talento nem aptidão, apenas vaidade, ainda assim, deteriorada.

Ps: Abujamra já se mostra intelectual e físicamente cansado, embora ainda seja ele e sua geração a vanguarda mais consistente do teatro nacional. Querem atestado mais explícito da total falta de brilho da atual geração de artistas? Estrelas apagadas. “vanité des vanité tout est vanité.”

Hedre Lavnzk Couto

p/ Carolina

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