Bom espetáculo. ‘Uma vez, nada mais’ é preciso e honesto. Executando uma direção digna daquela máxima – o bom teatro é aquele onde o espectador não percebe a mão do diretor -, mas sem deixar de ser rigorosa e detalhista, Hebe Alves mostrou-se extremamente generosa e cuidadosa na orquestração de seus artistas e elementos do espetáculo. E o resultado é uma ‘divertida “tragédia amorosa”’.
A pesquisa de concepção, roteiro e trama foi empreendida conjuntamente pela diretora e as atrizes Aícha Marques e Maria Menezes. E ao que parece mergulharam com afinco na investigação de um vasto material, se propondo a visitar relíquias estéticas do cinema ‘mudo’; e do rádio antigo (com seus impagáveis programas, vinhetas publicitárias e músicas). Em verdade, transparece uma vontade das artistas em resgatar a inocência e beleza de um tempo que foi e não volta mais. E com isso, reviver a inocência e plenitude de uma arte [a teatral] em avançado estágio de extinção. A vazão disso é dada através da criação de uma fábula singela e cotidiana, banhada de delicioso lirismo. Sendo que, para tanto, as atrizes se entregaram à busca daquilo que alguns teóricos denominariam de a ‘dramaturgia do ator’.
‘Uma vez, nada mais’ é, sobretudo, teatro de ator – e talvez nisso resida seu encanto maior! Aícha Marques e Maria Menezes fazem um espetáculo onde o diálogo verbal – pelo menos em sua acepção natural – não existe. Suas personagens se comunicam (entre si) e com o espectador por meio da linguagem dos movimentos do corpo. Mas a linguagem empreendida por elas está longe de ser a linguagem corporal comum: ao contrário, tais partituras apresentam inusitada complexidade na realização do tempo, do ritmo, do desenho e da extensão. Atrizes-autoras, certamente, foram beber das influências da tradição da pantomima, da mímica, e da reinvenção disso tudo! – com o advento do cinema ‘mudo’ (quer-se dizer, da imagem em movimento, com velocidade específica) – concretizada num outro momento da expressão corporal-gestual-artistica. E assim, Maria e Aícha nos apresenta sob forma de performances, talentosas e disciplinadas, a inegável constatação de que o corpo e os gestos têm muito a nos dizer a respeito da personalidade e do comportamento emocional dos indivíduos. Ambas executam com tal domínio o seu trabalho sobre o palco, que nós – público – chegamos a achar que aquilo tudo é simples, fácil de fazer, porque nos parece muitíssimo divertido. E nisso mora a verdadeira arte (os bailarinos o sabem bem) o esforço e a técnica jamais devem ser denunciados.
Em cena, o roteiro é ‘impresso’ pela própria trilha sonora. Ou poderíamos dizer que a trilha sonora é a essência do próprio roteiro. Hebe Alves elegeu o rádio como elemento condutor do desenrolar das situações. De maneira que um intervalo comercial, uma música, um trecho de uma fala de locutor, ou simplesmente a troca de uma estação por outra, já pode significar a alternância de cena para a situação seguinte. O material radiofônico usado, em sua maioria, é bastante interessante, e existe um ótimo trabalho de sincronia entre ele e os movimentos das atrizes. Porém, o espetáculo perde um pouco de sua originalidade e força, quando, por volta de 1 hora de duração, começa-se a fazer uso de material (áudio) de tele-novelas. E uma vez que o público já se encontra enfadado delas no dia-dia, há uma baixa. O que evidentemente é uma pena, porque a peça não necessitava correr esse risco ingrato. E aqui aproveito para ressaltar que o espetáculo deveria contar o tempo máximo de 60 minutos. Pois o público está irremediavelmente acostumado com o diálogo verbal, tão disseminado pela nossa realidade saturada de veículos de comunicação de massa, que esperar da platéia que ela se interesse em longo tempo por uma comédia 'muda', torna-se meio utópico. Subestimar esse fato é perigoso, penso.
Mesmo assim, em linhas gerais, pode-se sustentar que a encenação busca uma aproximação com a estética do cinema ‘mudo’, notadamente o chapliano. Mas, observem: eu disse ‘aproximação’ e não ‘imitação’. E esta opção foi sobremaneira inteligente. Haja vista que o cinema ‘mudo’ só existiu de forma tão marcante porque absorveu para si importantes traços da teatralidade. Ao que neste sentido, Hebe Alves e suas instigantes atrizes somente fizeram reaver, ao palco, algo que lhe é historicamente inerente.
Também na plástica segue-se por este caminho. O cenário e figurinos de Zuarte Júnior trazem uma aura retrô, trabalhando basicamente a indução visual de um ambiente p/b (preto/branco), quebrado deliberadamente, em alguns momentos, por um objeto vermelho (uma almofada em forma de coração), e por um dos figurinos (também vermelho) da personagem de Aicha. A luz, de Fábio Espírito Santo e maquiagem, de Marie Thauront, colaboram em imprescindível harmonia com o contexto almejado.
E fecho a sinopse: o espetáculo é bom. Digno. Confesso que tive dificuldade para tirar os olhos do que acontecia em cena. Em salvador, é um dos poucos trabalhos teatrais que se recomendaria a um amigo exigente. Embora o fato de ser tão dependente da trilha sonora (ótimo material de Brain Knave) enfraqueça a peça.
Visto em sábado (13=08-11), no teatro Jorge Amado. Em salvador-bahia-brasil.
p/ você, Carol.
Hedre Lavnzk Couto
quarta-feira, agosto 17
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