sexta-feira, agosto 5

Crítica do espetáculo ‘Dos males dos casamentos: Tchekhov em dois tempos’

Vejam aonde nos leva o desejo de saborear a montagem de um Tchekhov. Pelourinho. Abandonado, violento. Ladeira São Miguel. Degradada, suja. Teatro XVIII: precário. Pouco importa. Todo sacrifício é válido para ver um exemplar da obra daquele que é o maior dramaturgo do melhor teatro do mundo – o russo. E, além do mais, os diretores soteropolitanos raramente se encorajam a dialogar com Anton Tchekhov.
Por isso, comemorei a iniciativa do diretor Gil Vicente Tavares em apresentar para Salvador o Espetáculo ‘Dos males dos casamentos: Tchekhov em dois tempos’. Trata-se da junção textual de duas das chamadas [comédias curtas] da lavra tchekhoviana: ‘O Urso’; e ‘O Pedido de Casamento’.
A despeito de o próprio dramaturgo, originariamente, denominar até mesmo suas principais peças dramáticas de ‘comédias’ – e talvez assim chamando atenção para o quão patético é a existência humana – sua vasta obra também conta com uma verdadeira coleção de textos de pequeno formato; liberados de complexidade de trama, recheados de situações burlescas e personagens frívolos, quase que à maneira de uma comédia de costumes sintetizada, com o principal objetivo de fazer rir. Assim o é em ‘O Urso’, onde uma recente e rica viúva,que vive acompanhada somente de seu inseparável mordomo, recebe a inusitada visita de um dos credores do falecido. Na mesma linha temos ‘O Pedido de Casamento’, ocasião na qual um velho fazendeiro se vê em apuros para casar a filha solteirona com um vizinho hipocondríaco.
No Brasil, aparecem algumas coletâneas dessas peças, traduzidas sob o título “Dos males do tabaco”. Uma referência a dois monólogos – ditos por Tchekhov, ensaios dramatúrgicos – Dos males do tabaco 1 e Dos males do tabaco 2. São todas peças com grande potencial de levar platéias a verdadeiros surtos de gargalhadas. Contudo, são dificílimas de se fazer.
Gil Vicente Tavares é o diretor mais talentoso, original e persistente de sua geração. Seu temperamento investigativo o faz caminhar em busca de um estilo, tornando-o, certamente, um encenador inegavelmente promissor. É instigante vê-lo constantemente montando espetáculos de diferentes estéticas, desafiando diversas dramaturgias. E, de tempos em tempos, até nos brindando com sua própria dramaturgia – como quando escreveu e dirigiu o consistente ‘Os Javalis’.
Contudo, o seu atual ‘Dos males do casamento: Tchekhov em dois tempos’, é um espetáculo bastante debilitado. Se pode pontuar equívocos por quase toda a estrutura e orquestração dos elementos do espetáculo. Gil optou por, simplesmente, unir dois textos curtos e os denominou de “espetáculo”. Perceptivelmente, a aposta mais ousada que a direção se permitiu fazer foi estabelecer um desnecessário intervalo de 10 minutos entre a apresentação das duas peças. Se dispersa o público por nada, uma vez que os atores não chegam a se cansar. E me permito frisar: essas comédias curtas de Tcheckov são extremamente difíceis de montar. Quando direção e atores as subestimam, o resultado é o constrangimento. No geral, e não é diferente nos textos em questão, as peças deste dramaturgo são verdadeiras partituras teatrais. De certa forma, até musicais. Assim ,tudo precisa se encaixar no seu devido tempo e lugar, principalmente a interpretação dos atores.
Analisemos a primeira parte ou a primeira peça deste espetáculo de Gil Vicente Tavares. ‘O Urso’: vamos ao cenário. Alguns móveis pontuais – destaque para duas poltronas laterais e um sofá central – se propõem ao realismo sugerido de uma sala-de-estar. Esta cenografia é mal executada, embora não seja ela a responsável pelos males do espetáculo. A iluminação de Eduardo Tudella novamente não funciona. Ela compromete o resultado. De outro lado, reconheço que não é fácil fazer luz nas condições estruturais do Teatro XVIII. Não gosto dos figurinos. Não comunicam absolutamente nada do universo da peça. É como se o figurinista vestisse os personagens com itens aleatórios.
O trabalho dos atores aqui é um enigma.Marcelo Praddo e Carlos Betão são os dois melhores atores baianos em atividade. São muito bons! Fafá Menezes é, sem dúvida, uma boa atriz. Mesmo assim, parece que desta vez algo desandou. O mordomo criado por Praddo parece ansioso para se mostrar engraçado ao público. Exagera nos trejeitos afetados. Como se não bastasse, Marcelo aqui mantém relação pouco segura com os adereços de cena. O mordomo limpa demais os objetos. Numa ação mecânica, sem motivação, que talvez seja o ator buscando uma “muleta”, ou, quem sabe, aflito, por convencer o espectador, realçando uma possível eletricidade ou tagarelice da personagem – e, se assim for, está mal trabalhado, porque transparece vazia. A viúva de Fafá é apática. Atriz desempenha uma interpretação horizontal. Quase robotizada. Atrapalhada, Fafá suja a cena, reiteradamente, deixando o xale da personagem ir ao chão em várias passagens. O Credor encarnado por Carlo Betão é o melhor dentre eles. Mas, para não deixar que a peça toda desabe, o experiente ator é obrigado a carregar um verdadeiro piano nas costas, o que o faz ferir sua própria interpretação. Observa-se, também, que as marcações de cena não favorecem aos atores nem ao desenrolar das situações. Outro aspecto são os apartes que não são bem realizados. Na verdade, ficam confusos. Quando penso que o mais acertado seria quebrar de vez a chamada ‘quarta parede’, falando para e olhando nos olhos do espectador; ou, de outro modo, virar-se para o lado oposto do contracena e pronunciar a fala.
Para ‘O Pedido de Casamento’, aplica-se tudo aquilo que ressaltei para ‘O Urso’ no que se refere ao cenário, luz, figurinos, marcações e apartes. Plasticamente, o diretor aproveita para a segunda peça o que se usou na primeira – com um ou outro acréscimo de adereços, objetos de cena e focos de luz. Portanto, me permito ir de logo para a apreciação da interpretação.
Em ‘O Pedido de Casamento’, Natália Stiepánovna é vivida por Fafá Menezes. Aqui a atriz mais uma vez deixa a desejar. Apresenta uma construção que mais lembra aquela Dona Filó, antiga personagem de ‘A praça é nossa’. Juro a vocês que esperei que, em algum momento, ela fosse soltar um daqueles “oh, coitado!”. Fafá, assim, cria uma personagem sem energia e sem graça – o que resultou fatal para o todo. Vez que Natália é crucial, pelo fato de suas variações de humor, imprimir o andamento da peça – lembram da partitura? De novo a atriz incorre numa interpretação horizontal. Outra coisa que não decodifico é o fato de Natalia aparecer comendo nabos e cenouras (um espectador vizinho disse até que não se tratava de cenoura e, sim, de liguinças.) Seria a tentativa de uma gracinha fálica? Se foi, ninguém percebeu. O Tchubukhov do Betão não é bom. Não aparece a necessária fanfarronice do velho russo bonachão. Assim, também este personagem não cumpriu bem a função indicada por Tchekhov na presente carpintaria dramatúrgica, que é a de reavivar o ritmo da cena, trazer uma espécie de frescor, quando o embate direto entre Natália e Vassilievitch já se mostrar perigosamente previsível. Houve a tentativa através de muitos gritos. E deu no que deu. A construção de Ivan Vassilievitch por Praddo é fraquíssima. É como se apenas tivesse ele trocado o figurino da primeira peça. Todo o resto é muito similar. Marcelo não conseguiu nos trazer as peculiaridades do Vassilievitch: hipocondríaco, mimado, ranzinza, implicante, egoísta, quase neurastênico, divertido.
Não se pode falar em objeto artístico, ou seja, em espetáculo de teatro ( e neste momento estou deixando de lado os pseudo-vanguardistas de plantão) sem se pensar em partes que se harmonizam num todo orgânico. A ideia de ‘espetáculo’ pressupõe unidade. Daí a minha ingrata surpresa quando Gil Vicente Tavares realiza uma colagem tosca e a classifica indevidamente. Mas Gil é Gil. Xará de ex-ministro e afilhado do grande Ubaldo Ribeiro. Por falar nisso, voltarei a Gil Vicente Tavares com a crítica do seu outro espetáculo ‘Sargento Getúlio'. Até lá, leitores!

Espetáculo visto em junho de 2010, no teatro xviii, salvador-bahia-brasil.
p/ Carolina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário