quarta-feira, agosto 17

Crítica do espetáculo ‘Casa número nada’, ou, o monólogo da vulva azul

O culpado pelo acidente de percurso foi Fernando Neves (amigo querido de boa data e ator (dos bons!) a quem tive a honra de ter sob minha direção nos espetáculos ‘A Mulher Sem Pecado’ – 2007; e ‘Os Sete Gatinhos’ – 2008; ambos, da obra do inesgotável Nelson Rodrigues.), nos encontramos ao acaso, nas imediações dos Barris, Neves seguia para o teatro, e como me divirto muito em sua presença, acompanhei-o.

E lá fomos nós ao Teatro Xisto Bahia. Um monólogo com dramaturgia e direção de Fábio Vidal. Um Solo da atriz Mariana Freire. Vamos ao trabalho: a direção optou por subverter a rígida disposição palco-platéia (‘à italiana’) do Teatro Xisto, estabelecendo uma outra convenção de caixa cênica [não menos rígida que a primeira], aplicando uma configuração onde, com uso de fita crepe, desenhou-se no tablado uma planta baixa de uma espécie de apartamento 1/4 sala, e o público, por sua vez, assentou-se em torno dos lados do quadrado. Com esta opção (que ultimamente tem virado moda entre nós), Vidal, por certo, pretendia criar no espectador a sensação de estar dentro de certa ‘casa número nada’. Esta impressão, entretanto, ele não conseguiu produzir, e este é apenas um dos diversos problemas do espetáculo.

A dramaturgia apresentada por Fábio Vidal é incompreensível. Não se compreende o cerne do discurso. Atira-se, desse modo, para todos os lados, é como aquela velha imagem de um liquidificador megalomaníaco, que quer mastigar o mundo todo, e que associado a um ventilador bêbado, deseja cuspir baboseiras mal cheirosas na cara do espectador-pecador. Li o jornal ‘A Tarde’ onde o diretor diz que seu monólogo discute questões como o vazio existencial; a retirada da segurança material; o sistema capitalista de consumo; e o “ter” versus o “ser”. Porém, na peça, que é onde realmente interessa aparecer, nada disso é percebido. Nada. O que fatalmente leva o espectador a concluir, que, a julgar por este atual trabalho, Fábio Vidal é melhor candidato a filósofo que diretor (dramaturgo) de teatro.

Os dilemas do mundo aí estão. O artista, o dramaturgo, o ator, o funâmbulo, ou sei lá quem mais, podem optar por viver como homens de seu tempo ou não. Mas, sobretudo, faz-se necessário livrar-se da tentação de construir qualquer ‘samba-do-maneca-cego’ e apresentá-lo ao mundo como grande supra-sumo da arte moderna. O artista não pode curvar-se diante da tentação da facilidade. Certos temas tão batidos, e tão reivindicados como chaves para o entendimento e transformação da complexidade da sociedade moderna, como o consumismo; o capitalismo; o individualismo; a solidão etc são, longe de dúvida, fontes poderosas para a produção de objetos artísticos do mais alto valor. Porém, aquilo que de pior pode haver num artista é a incapacidade de autocrítica. Certas coisas, não se podem apresentar, nem sozinhos, ao espelho. Sob pena de ele quebrar-se.

O monólogo de Vidal e Mariana dura intermináveis 62 minutos. E, neste ínterim, não se trata, em momento algum, da tal da ‘retirada da segurança material’; mas, sim, de insegurança artística. Não se discute ‘vazio existencial’; porém, antes, vazio criativo-técnico. E o único “ter” que se revela, é o da esterilidade de talento e incapacidade de realização, versus o “ser” do auto-engano.

A personagem de M. Freire adentra à planta baixa da ‘casa número nada’, e lá, como que dominada por sucessivos e alternados ataques de esquizofrenia, neurastenia, gritinhos histéricos de toda sorte, e uma aura geral de psicopatia mística, debate-se contra o chão, vomita desesperadamente diversos assuntos e passagens obscuras; bufa, mija, baba, chora, e , sobretudo, num momento apoteótico – exibe a vulva! Espetáculos como este afastam os - já tão raros – espectadores do teatro. Não se aproveita nada dessa peça. Não há um aspecto, sequer, que se salve.

O ridículo vai desde os estridentes gritos de Mariana; à total inabilidade do trabalho corporal; ao descalabro de uma perigosa escalada psíquico-emocional que chega a dar pena (do ‘papelão’) da atriz em cena. Sem contar do desconforto de um público atônito e mártir, diante da confissão cênica atabalhoada de uma direção que se rende perante o invertebrado monstro que criou.

Não se entende patavina da construção da personagem de Mariana. Em cena, parecia uma adolescente em peça colegial, desesperada para salvar, que fosse, meio minuto de sua representação. Mas como ‘o inferno são os olhos dos outros’, diretor e atriz, não hesitaram em nos conferir grande e sacrificiosa prova de amor pelo bem da arte: aderiram, euforicamente, à banalização do nu.

Porque assim é que é: peça de teatro que se preze, tem que mostrar a vulva, meu chapa! Já é longa tradição entre nós. Se se percebe que o espetáculo é fraco em arte, apela-se, vaidosamente, para o desfile das vaginas ávidas por uns segundos de exposição deslumbrante. Nossos artistas modernos e descolados – que sabidamente pouco lêem nem estudam – descobriram a pólvora, ou melhor, a força das curvas e dos pêlos pubianos. E, iluminados, decidiram: “queremos chocar esse público sem-gracinha, normalzinho e pançudinho!”. Mal sabem eles (os artistas retados de plantão) que as vulvas já não são tão perigosas, e que, quase todos já temos, pelo menos, uma dessas feras em casa. O que choca, de verdade, nestes dias, é a tamanha falta de talento sobre os nossos palcos.

Visto em quarta-feira, 17-08-11. Salvador-bahia-brasil.

p/ Carol.
Hedre Lavnzk Couto

Crítica do espetáculo ‘Uma vez, nada mais’

Bom espetáculo. ‘Uma vez, nada mais’ é preciso e honesto. Executando uma direção digna daquela máxima – o bom teatro é aquele onde o espectador não percebe a mão do diretor -, mas sem deixar de ser rigorosa e detalhista, Hebe Alves mostrou-se extremamente generosa e cuidadosa na orquestração de seus artistas e elementos do espetáculo. E o resultado é uma ‘divertida “tragédia amorosa”’.

A pesquisa de concepção, roteiro e trama foi empreendida conjuntamente pela diretora e as atrizes Aícha Marques e Maria Menezes. E ao que parece mergulharam com afinco na investigação de um vasto material, se propondo a visitar relíquias estéticas do cinema ‘mudo’; e do rádio antigo (com seus impagáveis programas, vinhetas publicitárias e músicas). Em verdade, transparece uma vontade das artistas em resgatar a inocência e beleza de um tempo que foi e não volta mais. E com isso, reviver a inocência e plenitude de uma arte [a teatral] em avançado estágio de extinção. A vazão disso é dada através da criação de uma fábula singela e cotidiana, banhada de delicioso lirismo. Sendo que, para tanto, as atrizes se entregaram à busca daquilo que alguns teóricos denominariam de a ‘dramaturgia do ator’.

‘Uma vez, nada mais’ é, sobretudo, teatro de ator – e talvez nisso resida seu encanto maior! Aícha Marques e Maria Menezes fazem um espetáculo onde o diálogo verbal – pelo menos em sua acepção natural – não existe. Suas personagens se comunicam (entre si) e com o espectador por meio da linguagem dos movimentos do corpo. Mas a linguagem empreendida por elas está longe de ser a linguagem corporal comum: ao contrário, tais partituras apresentam inusitada complexidade na realização do tempo, do ritmo, do desenho e da extensão. Atrizes-autoras, certamente, foram beber das influências da tradição da pantomima, da mímica, e da reinvenção disso tudo! – com o advento do cinema ‘mudo’ (quer-se dizer, da imagem em movimento, com velocidade específica) – concretizada num outro momento da expressão corporal-gestual-artistica. E assim, Maria e Aícha nos apresenta sob forma de performances, talentosas e disciplinadas, a inegável constatação de que o corpo e os gestos têm muito a nos dizer a respeito da personalidade e do comportamento emocional dos indivíduos. Ambas executam com tal domínio o seu trabalho sobre o palco, que nós – público – chegamos a achar que aquilo tudo é simples, fácil de fazer, porque nos parece muitíssimo divertido. E nisso mora a verdadeira arte (os bailarinos o sabem bem) o esforço e a técnica jamais devem ser denunciados.

Em cena, o roteiro é ‘impresso’ pela própria trilha sonora. Ou poderíamos dizer que a trilha sonora é a essência do próprio roteiro. Hebe Alves elegeu o rádio como elemento condutor do desenrolar das situações. De maneira que um intervalo comercial, uma música, um trecho de uma fala de locutor, ou simplesmente a troca de uma estação por outra, já pode significar a alternância de cena para a situação seguinte. O material radiofônico usado, em sua maioria, é bastante interessante, e existe um ótimo trabalho de sincronia entre ele e os movimentos das atrizes. Porém, o espetáculo perde um pouco de sua originalidade e força, quando, por volta de 1 hora de duração, começa-se a fazer uso de material (áudio) de tele-novelas. E uma vez que o público já se encontra enfadado delas no dia-dia, há uma baixa. O que evidentemente é uma pena, porque a peça não necessitava correr esse risco ingrato. E aqui aproveito para ressaltar que o espetáculo deveria contar o tempo máximo de 60 minutos. Pois o público está irremediavelmente acostumado com o diálogo verbal, tão disseminado pela nossa realidade saturada de veículos de comunicação de massa, que esperar da platéia que ela se interesse em longo tempo por uma comédia 'muda', torna-se meio utópico. Subestimar esse fato é perigoso, penso.

Mesmo assim, em linhas gerais, pode-se sustentar que a encenação busca uma aproximação com a estética do cinema ‘mudo’, notadamente o chapliano. Mas, observem: eu disse ‘aproximação’ e não ‘imitação’. E esta opção foi sobremaneira inteligente. Haja vista que o cinema ‘mudo’ só existiu de forma tão marcante porque absorveu para si importantes traços da teatralidade. Ao que neste sentido, Hebe Alves e suas instigantes atrizes somente fizeram reaver, ao palco, algo que lhe é historicamente inerente.

Também na plástica segue-se por este caminho. O cenário e figurinos de Zuarte Júnior trazem uma aura retrô, trabalhando basicamente a indução visual de um ambiente p/b (preto/branco), quebrado deliberadamente, em alguns momentos, por um objeto vermelho (uma almofada em forma de coração), e por um dos figurinos (também vermelho) da personagem de Aicha. A luz, de Fábio Espírito Santo e maquiagem, de Marie Thauront, colaboram em imprescindível harmonia com o contexto almejado.

E fecho a sinopse: o espetáculo é bom. Digno. Confesso que tive dificuldade para tirar os olhos do que acontecia em cena. Em salvador, é um dos poucos trabalhos teatrais que se recomendaria a um amigo exigente. Embora o fato de ser tão dependente da trilha sonora (ótimo material de Brain Knave) enfraqueça a peça.

Visto em sábado (13=08-11), no teatro Jorge Amado. Em salvador-bahia-brasil.

p/ você, Carol.

Hedre Lavnzk Couto

terça-feira, agosto 9

Crítica do espetáculo ‘As Velhas’

‘Um homem é um homem’, de B. Brecht, encenado pelo Grupo Galpão, é, sem dúvida, o melhor espetáculo de teatro já visto por mim. Os artistas mineiros, naquela peça, exploraram brilhantemente os recursos da narrativa épica do teatro brechtiano. Um espetáculo impressionante. Que tenho até hoje, com carinho e gratidão, guardado na memória.

Mas aquela noite prazerosa, vivida na sala principal do Teatro Castro Alves, ficou no passado. Na noite de hoje estou no Teatro Sesc Pelourinho. Tomo meu assento na platéia. Vai começar ‘As Velhas’. Começa. Como sempre, estou concentrado. Atento a tudo e a todos sobre o palco. O tempo vai passando. E eu observo. E pondero. Observo. E pondero. Sou daqueles espectadores que sempre saem de casa otimistas. Sempre torcendo pela encenação. A cabeça inicia um momento crítico da ebulição. E então surgem as minhas primeiras anotações: ‘Não consigo entender. Que situações são estas em cena? Quem são eles? Onde estão? O que estão fazendo? É este, o objetivo? Me deixar perdido? Estão tentando usar ferramentas da narrativa épica, é isso? É esta uma tentativa de cena-não-naturalística?’ Escrevo tudo isso enquanto metade da platéia conversa muito e – atipicamente – alto! - Talvez, (penso) estão se fazendo as minhas mesmas perguntas.

Decido então olhar rapidamente o programa do espetáculo. – Ah, sim! Diz aqui que é uma peça que trata do nordeste. Aqui diz: “drama passional vivido em meio à secura da terra. Duas mulheres que lutam por suas terras, maridos e filhos, numa espiral de vingança e solidariedade, que termina revelando a beleza trágica do sertão.” Bonita. A sinopse. Não há muito que falar sobre esta peça. Mas devo concluir [fazendo minhas] as palavras de um dos personagens: “quem se abaixa demais o cú aparece”, Marfuz!

Espetáculo visto na sexta-feira (5-8-11) no teatro sesc selourinho. salvador- Bahia – Brasil.

ps1: direção de Luiz Marfuz, professor de fundamentos do espetáculo da etea-ufba.

ps2: Lourdes Ramalho é a dramaturga. Dramaturgia, aliás, que lembra muito as peças inconsistentes de Dinah Pereira.

Ps3: poder-se-ia acrescentar ao título do espetáculo: ‘As Velhas... maneiras batidas e pedantes de os pseudo-intelectuais perceberem a cultura nordestina'.

Ps4: ou mesmo poder-se-ia alterar ‘As Velhas’ para o título ‘O Equívoco’. E Camus, que teria homônimo, que me perdoe.

Ps5: ninguém nunca conseguiu me explicar o que é ‘teatro físico’. Será que esse é o nome que alguns dão pra meia dúzia de atores, em cena, se debatendo em violentos espasmos e convulsões?

Ps6: não há dúvida de que Marfuz tem plena consciência que essa abordagem estereotipada do nordeste é um estelionato cultural e artístico. E é evidente que Marfuz conhece e sabe empregar, como poucos, os recursos da cena-não-naturalística e de qualquer outro tipo de teatro. Mas o que mais me espanta é esta rotina que já se estabelece na carreira de tal diretor: ele tem concebido e apresentado, reiteradamente, espetáculos extremamente (eu serei educado) ‘descuidados’ – assim o foi em ‘Policarpo Quaresma’; em ‘Atirem a primeira pedra’, onde ele destruiu Nelson Rodrigues; e agora temos este ‘As Velhas’, que, se certamente for visto por alguém que está indo ao teatro pela primeira vez, fará com que este espectador nunca mais lá volte.


Hedre Lavnzk Couto
p/ Carolzinha.

segunda-feira, agosto 8

Crítica do espetáculo ‘O melhor do homem’

Com fumaça e ares de performance de candidatos a netos do Living Theatre, está em cartaz no Teatro Molière ‘O melhor do homem’. Trata-se de genuíno representante do chamado teatro pensador. O texto é de Carlota Zimmerman. E Djalma Thürler, intelectual pós-doutorado em teatro, assina tradução, direção e trilha sonora. A julgar por este seu atual trabalho, Thürler manifesta possuir grande cultura teatral e, se não fosse a exacerbada confusão residente no discurso de sua peça, poderíamos tê-lo por um encenador interessante.

Segundo Djalma, ‘O melhor do homem’ – considerada a primeira gay-play brasileira – é um espetáculo que busca ajudar a sociedade a compreender a sexualidade como fenômeno cultural histórico. Além de propor discutir e denunciar as mazelas da heteronormatividade Mas, eis que nasce o impasse. Ou por outra, a confusão. Pois o que realmente foi oferecido ao público, ao longo de 52 minutos de duração, é uma obra que se propõe a apresentar não uma reflexão sobre a sexualidade, mas antes a homossexualidade, como fenômeno cultural histórico. E aí o que seria uma mensagem forte e louvável, se enfraquece pelo viés reducionista e, quase puritano, tão característico de quando o artista busca facilidades, deixando de ser dialético para mergulhar em maniqueísmo. Portanto, o contundente equívoco da direção nesta peça é, levianamente, ostentar que, na sociedade, apenas os homossexuais padecem das vicissitudes decorrentes dos desejos e impulsos de exercitar em plenitude a sexualidade.

Os conflitos, os sofrimentos, os desafios, as descobertas e a recorrente necessidade de se quebrar deletérios paradigmas sociais, inerentes à forma de se encarar a sexualidade, nas mais diferentes épocas e culturas, sempre foi uma árdua realidade e dilema, na vida de seres humanos tanto homossexuais quanto heterossexuais. E por óbvio, pode-se considerar contraproducente e mesmo, irresponsável, qualquer tentativa sorrateira (ainda mais fazendo uso da arte) de se projetar a alegoria de uma super-categoria humana, para a qual se queira reconhecer um caráter quase sacro e de conduta incontestavelmente bela. E, ora, também não me parece muito inteligente, se pretender um combate contra o fantasma da heteronormatividade de maneira estrábica, radical. Essa espécie de guerra ‘santa’, honestamente, guarda semelhança com o sentido de um neologismo, cunhado, recentemente por outro louco – ‘heterofobia!’. Essse reducionismo resulta a peça de Thüler, não sei se o texto de Zimmerman (pois não o conheço no original), piegas e [usarei uma expressão forte] fundamentalista.

A presente encenação seria verdadeiramente exitosa se nos tivesse apresentado a metáfora da violenta prisão porque passa, ainda hoje, a sexualidade do homem moderno – homem em sentido AMPLO! Contentar-se apenas com o debate em torno do ‘armário homossexual’, não deveria ser lá muito dignificante para um encenador sinceramente comprometido com a construção de um tempo.

Idiossincrasias à parte, antes que me comparem a Jair Bossonaro, vamos aos outros aspectos da confusão cênica em questão. O fato é que a encenação comunica exclusivamente sexo por toda a extensão da peça, e, num salto ‘deus ex machina ‘, nos dois minutos finais tenta impor ao público que durante todo o tempo abordou uma relação amorosa. Ao que repito: o encenador só conseguiu criar um objeto artístico que tão somente fala de sexo. Novamente acrescento que não conheço o texto em original, mas... Transpareceu aquela história ‘vamos finalizar de qualquer jeito que a babata tá quente!’. Outro ponto constrangedor a ressaltar, é a maneira débil como o espetáculo se mete a discutir temas complexos, que demandam reflexão apurada, como pedofilia e Aids. O texto, por sua vez, perde força dramatúrgica ao estabelecer uma situação cênica onde as falas dos personagens, em sua maioria, surgem num tom confessional que com o transcorrer afasta o interesse do público e cria quase antipatia. Além disso, os diálogos são fraquíssimos e encadeados numa estrutura e conteúdo de verdadeiras discussões de relacionamento, e isso os torna rapidamente patéticos. Já a tradução não coopera, à medida que ainda guarda grande ranço de certas peculiaridades da sociedade norte americana.

Mas nem tudo se perdeu... É boa a ideia e concepção geral - não do discurso tendencioso - mas da mecânica do espetáculo. O melhor da encenação de Djalma Thürler é que ela abraça a ‘linguagem gênese’ do teatro: o lúdico, o jogo! Com direito a um belo momento, onde até uma miniatura de carro é usada para os personagens/atores viverem uma cena. São dois personagens – ou personagens/atores, isso também não fica muito claro – propondo reciprocamente e vivendo jogos e a teatralização de fantasias sexuais e de ‘fantasmas’ de seus passados. As atmosferas têm como base um cenário (de José Dias) extremamente inteligente. Uma espécie de recorte da moldura de uma jaula metálica que, embasada num eixo central, vai ganhando os mais diversos ângulos, de maneira a sugerir os mais variados ambientes, sempre relativos à acepção de um aprisionamento. E por certo, durante bom trecho da peça o público deve se perguntar: “Dois prisioneiros. Mas do que? Ou, de quem? Uma prisão? Prisões. Mas que prisões são estas?”

São dois prisioneiros jogando. Personagens/atores que vão despindo-se e vestindo-se. E ao sabor das fantasias e novos personagens vão adicionando ou tirando adereços e maquiagens (o figurino eficiente é de Renata Cardoso). Sendo que toda vez que o jogo micha para algum dos personagens, a luz amarela (como a chamar-lhes atenção) lhes devolvem ao ‘plano da realidade’. Quando adentram novamente aos games, tem-se uma luz onírica. A luz branca vai a a full quando desejam escancarar a teatralidade (a iluminação acertada é de Pedro Dultra).

Com as raríssimas exceções de plantão, os atores de nossa época ( Isso ficou meio shakespeariano, mas tudo bem) são fraquíssimos – com destaque negativo especial para aqueles nascidos na década de 1980 em diante – e neste espetáculo, infelizmente, não é diferente: faltam bons interpretes para executar a concepção pretendida. O Duda Woyda, p. ex., no palco, fala como se gente não fosse. E eu já começo a entrar em desespero, porque a maioria dos atores que tenho visto (e olha que só neste fim de semana assisti a três peças) falam em cena como se estivessem no teatro neoclássico francês. E eu me pergunto: onde estão os professores doutores da Etea-Ufba que não dao um jeito nisso? E no caso especifico deste espetáculo, tanto pior, pelo fato de o Djalma ter-se revelado péssimo diretor de atores. E comprova-se isso pela condução equivocada [da gradação da energia dos atores] na exteriorização dos embates psicológicos, com as forças física, mental e cênica completamente deslocadas. Optou-se pela expressão do nú de maneira plástica, e não apelativa – parabéns! Por outro lado, o descuido com a preparação corporal é patente.

Espetáculos como ‘O melhor do homem’ me levam a refletir sobre a repetição daquele terrível vício que vitima muitos artistas: aprisionarem-se, inexoravelmente, a seus próprios umbigos.

Visto em domingo (7-8-11) Aliança Francesa – salvador – bahia- brasil.

PS1: Ninguém nunca conseguiu me explicar o que é uma direção de arte no teatro.

PS2: A plateia desta noite era composta basicamente de gays. Mesmo assim, lá pelos 30 minutos, notei a confissão proferida por um rapaz da fileira da frente: “cansei”.

p/ minha boa Carolina
Hedre Lavnzk Couto

sexta-feira, agosto 5

Crítica do espetáculo ‘Dos males dos casamentos: Tchekhov em dois tempos’

Vejam aonde nos leva o desejo de saborear a montagem de um Tchekhov. Pelourinho. Abandonado, violento. Ladeira São Miguel. Degradada, suja. Teatro XVIII: precário. Pouco importa. Todo sacrifício é válido para ver um exemplar da obra daquele que é o maior dramaturgo do melhor teatro do mundo – o russo. E, além do mais, os diretores soteropolitanos raramente se encorajam a dialogar com Anton Tchekhov.
Por isso, comemorei a iniciativa do diretor Gil Vicente Tavares em apresentar para Salvador o Espetáculo ‘Dos males dos casamentos: Tchekhov em dois tempos’. Trata-se da junção textual de duas das chamadas [comédias curtas] da lavra tchekhoviana: ‘O Urso’; e ‘O Pedido de Casamento’.
A despeito de o próprio dramaturgo, originariamente, denominar até mesmo suas principais peças dramáticas de ‘comédias’ – e talvez assim chamando atenção para o quão patético é a existência humana – sua vasta obra também conta com uma verdadeira coleção de textos de pequeno formato; liberados de complexidade de trama, recheados de situações burlescas e personagens frívolos, quase que à maneira de uma comédia de costumes sintetizada, com o principal objetivo de fazer rir. Assim o é em ‘O Urso’, onde uma recente e rica viúva,que vive acompanhada somente de seu inseparável mordomo, recebe a inusitada visita de um dos credores do falecido. Na mesma linha temos ‘O Pedido de Casamento’, ocasião na qual um velho fazendeiro se vê em apuros para casar a filha solteirona com um vizinho hipocondríaco.
No Brasil, aparecem algumas coletâneas dessas peças, traduzidas sob o título “Dos males do tabaco”. Uma referência a dois monólogos – ditos por Tchekhov, ensaios dramatúrgicos – Dos males do tabaco 1 e Dos males do tabaco 2. São todas peças com grande potencial de levar platéias a verdadeiros surtos de gargalhadas. Contudo, são dificílimas de se fazer.
Gil Vicente Tavares é o diretor mais talentoso, original e persistente de sua geração. Seu temperamento investigativo o faz caminhar em busca de um estilo, tornando-o, certamente, um encenador inegavelmente promissor. É instigante vê-lo constantemente montando espetáculos de diferentes estéticas, desafiando diversas dramaturgias. E, de tempos em tempos, até nos brindando com sua própria dramaturgia – como quando escreveu e dirigiu o consistente ‘Os Javalis’.
Contudo, o seu atual ‘Dos males do casamento: Tchekhov em dois tempos’, é um espetáculo bastante debilitado. Se pode pontuar equívocos por quase toda a estrutura e orquestração dos elementos do espetáculo. Gil optou por, simplesmente, unir dois textos curtos e os denominou de “espetáculo”. Perceptivelmente, a aposta mais ousada que a direção se permitiu fazer foi estabelecer um desnecessário intervalo de 10 minutos entre a apresentação das duas peças. Se dispersa o público por nada, uma vez que os atores não chegam a se cansar. E me permito frisar: essas comédias curtas de Tcheckov são extremamente difíceis de montar. Quando direção e atores as subestimam, o resultado é o constrangimento. No geral, e não é diferente nos textos em questão, as peças deste dramaturgo são verdadeiras partituras teatrais. De certa forma, até musicais. Assim ,tudo precisa se encaixar no seu devido tempo e lugar, principalmente a interpretação dos atores.
Analisemos a primeira parte ou a primeira peça deste espetáculo de Gil Vicente Tavares. ‘O Urso’: vamos ao cenário. Alguns móveis pontuais – destaque para duas poltronas laterais e um sofá central – se propõem ao realismo sugerido de uma sala-de-estar. Esta cenografia é mal executada, embora não seja ela a responsável pelos males do espetáculo. A iluminação de Eduardo Tudella novamente não funciona. Ela compromete o resultado. De outro lado, reconheço que não é fácil fazer luz nas condições estruturais do Teatro XVIII. Não gosto dos figurinos. Não comunicam absolutamente nada do universo da peça. É como se o figurinista vestisse os personagens com itens aleatórios.
O trabalho dos atores aqui é um enigma.Marcelo Praddo e Carlos Betão são os dois melhores atores baianos em atividade. São muito bons! Fafá Menezes é, sem dúvida, uma boa atriz. Mesmo assim, parece que desta vez algo desandou. O mordomo criado por Praddo parece ansioso para se mostrar engraçado ao público. Exagera nos trejeitos afetados. Como se não bastasse, Marcelo aqui mantém relação pouco segura com os adereços de cena. O mordomo limpa demais os objetos. Numa ação mecânica, sem motivação, que talvez seja o ator buscando uma “muleta”, ou, quem sabe, aflito, por convencer o espectador, realçando uma possível eletricidade ou tagarelice da personagem – e, se assim for, está mal trabalhado, porque transparece vazia. A viúva de Fafá é apática. Atriz desempenha uma interpretação horizontal. Quase robotizada. Atrapalhada, Fafá suja a cena, reiteradamente, deixando o xale da personagem ir ao chão em várias passagens. O Credor encarnado por Carlo Betão é o melhor dentre eles. Mas, para não deixar que a peça toda desabe, o experiente ator é obrigado a carregar um verdadeiro piano nas costas, o que o faz ferir sua própria interpretação. Observa-se, também, que as marcações de cena não favorecem aos atores nem ao desenrolar das situações. Outro aspecto são os apartes que não são bem realizados. Na verdade, ficam confusos. Quando penso que o mais acertado seria quebrar de vez a chamada ‘quarta parede’, falando para e olhando nos olhos do espectador; ou, de outro modo, virar-se para o lado oposto do contracena e pronunciar a fala.
Para ‘O Pedido de Casamento’, aplica-se tudo aquilo que ressaltei para ‘O Urso’ no que se refere ao cenário, luz, figurinos, marcações e apartes. Plasticamente, o diretor aproveita para a segunda peça o que se usou na primeira – com um ou outro acréscimo de adereços, objetos de cena e focos de luz. Portanto, me permito ir de logo para a apreciação da interpretação.
Em ‘O Pedido de Casamento’, Natália Stiepánovna é vivida por Fafá Menezes. Aqui a atriz mais uma vez deixa a desejar. Apresenta uma construção que mais lembra aquela Dona Filó, antiga personagem de ‘A praça é nossa’. Juro a vocês que esperei que, em algum momento, ela fosse soltar um daqueles “oh, coitado!”. Fafá, assim, cria uma personagem sem energia e sem graça – o que resultou fatal para o todo. Vez que Natália é crucial, pelo fato de suas variações de humor, imprimir o andamento da peça – lembram da partitura? De novo a atriz incorre numa interpretação horizontal. Outra coisa que não decodifico é o fato de Natalia aparecer comendo nabos e cenouras (um espectador vizinho disse até que não se tratava de cenoura e, sim, de liguinças.) Seria a tentativa de uma gracinha fálica? Se foi, ninguém percebeu. O Tchubukhov do Betão não é bom. Não aparece a necessária fanfarronice do velho russo bonachão. Assim, também este personagem não cumpriu bem a função indicada por Tchekhov na presente carpintaria dramatúrgica, que é a de reavivar o ritmo da cena, trazer uma espécie de frescor, quando o embate direto entre Natália e Vassilievitch já se mostrar perigosamente previsível. Houve a tentativa através de muitos gritos. E deu no que deu. A construção de Ivan Vassilievitch por Praddo é fraquíssima. É como se apenas tivesse ele trocado o figurino da primeira peça. Todo o resto é muito similar. Marcelo não conseguiu nos trazer as peculiaridades do Vassilievitch: hipocondríaco, mimado, ranzinza, implicante, egoísta, quase neurastênico, divertido.
Não se pode falar em objeto artístico, ou seja, em espetáculo de teatro ( e neste momento estou deixando de lado os pseudo-vanguardistas de plantão) sem se pensar em partes que se harmonizam num todo orgânico. A ideia de ‘espetáculo’ pressupõe unidade. Daí a minha ingrata surpresa quando Gil Vicente Tavares realiza uma colagem tosca e a classifica indevidamente. Mas Gil é Gil. Xará de ex-ministro e afilhado do grande Ubaldo Ribeiro. Por falar nisso, voltarei a Gil Vicente Tavares com a crítica do seu outro espetáculo ‘Sargento Getúlio'. Até lá, leitores!

Espetáculo visto em junho de 2010, no teatro xviii, salvador-bahia-brasil.
p/ Carolina.

segunda-feira, agosto 1

Crítica do espetáculo ‘Camila Baker’ – O Novo Fernando Guerreiro

Lembrete 1: Talvez este texto não seja breve.Lembrete 2: Jamais esperem de mim semelhança com a Eduarda Uzêda. Não escrevo para agradar amigos. Na noite chuvosa de sábado (30/07/11), compareci à versão baiana do espetáculo Camila Baker. É a terceira vez – versões anteriores datam de 1999 e 2005 – que o diretor Fernando Guerreiro assina a direção do texto de Emilio Boechat. Seguindo o surto de adjetivação em voga, Guerreiro acrescentou ao espetáculo o sub-título “uma comedida estranha”. E confessa o dilema que o dominou antes de decidir-se pela nova montagem: “Camila de novo, homens vestidos de mulher de novo, comédia com ares de besteirol de novo... danem-se as questões intelectuais.” Estas palavras demonstram a coragem artística do encenador. Porém, por que “danem-se as questões intelectuais”? Na seqüência de sua fala, Fernando proclama: “A peça é muito inteligente.” É? E por que a peça é muito inteligente? E, prossegue: “A montagem é uma homenagem ao teatro.” É? De qual forma? Por que “brinca com clichês de vários gêneros de encenação”? E mais adiante o diretor baiano que mais admiro, arremata: “mas o principal é que continuo a exercitar um gênero que mudou a cara do teatro baiano e fez história." Ora, mas que gênero é esse, Guerreiro? E Carambolas! Um diretor que manda às favas questões intelectuais, não pode sustentar seu discurso e marketing nessa conversa de gênero. Outra pergunta, senhores: qual é a cara do teatro baiano?

De minha parte, infelizmente, para analisar o espetáculo preciso me acercar das tão malfadadas “questões intelectuais”. E, para começo de conversa, trata-se de grosseiro equívoco reivindicar à ‘Camila Baker’ a denominação de ‘besteirol’. A estética Besteirol como surgiu em São Paulo, e no Rio de Janeiro (Salvador é uma outra história, ver *texto sobre o assunto neste mesmo Blog) nos anos 1980 e 1990, sempre teve por objetivo único levar a platéia ao riso - e nisso reside a inegável genialidade desta vertente do humor. Esse movimento jamais desejou transmitir mensagens com o intuito de transformar pessoas e o mundo - e isso é invejável. Em essência, é um gênero que exige técnica apuradíssima, que, entretanto, visa tão somente o deboche pelo deboche - e isso é refinado, por mais que neguem alguns. Se certas coisas são apenas questões de rótulos, outras, não. E àqueles que não se apegam a determinadas minúcias, faz-se menos perigoso não adentrar a certas discussões, sob pena de escancararem fragilidades técnicas... e até artísticas.

Dizer Camila Baker um espetáculo em homenagem ao teatro é definitivamente excluí-lo do Gênero Besteirol. Pois este não se interessa em homenagear patavinas, apenas se diverte em divertir o espectador. E eis que nos aparece outra questão: Afinal, a qual estética pertenceria Camila Baker? Me passa a impressão de uma tentativa inábil e, talvez, inconsciente, de beber do Show de Variedades. Todavia, para realizá-lo, a contento, necessita-se razoável pesquisa e prática nesta tradição artística, que chega a flertar com o non-sense. Fernando demonstrou não possuí-la. O Show de variedades não está na sua ‘zona de conforto artístico’. E a tal da [homenagem] que pretendera fazer às artes cênicas, tem aspecto de acomodação artística. É como se o diretor não tivesse se desafiado o bastante nesta peça. Preferiu o caminho daquelas facilidades e truques banais, capazes de conseguir a cumplicidade, momentânea, de um público ávido para jantar – e com parca exigência em matéria de humor – habituado a gargalhar até das ‘macaqueadas’ do – ‘imerecível’ – Renato Piaba – sabidamente cria artística de Fernando Guerreiro. E cá para nós, se homenageia alguém ou algo, simploriamente citando nomes de artistas e parodiando esquetes de gêneros? Contem até três, senhores.

O que mais prejudica o espetáculo não são os homens vestidos de mulher; nem os ares de besteirol. Talvez, seja justamente o confesso desprezo pelas questões intelectuais, e a heróica presunção de a direção considerar-se a si e a seu produto, irremediavelmente, inteligentes. A direção tem a obrigação de questionar-se e situar-se quanto à zona estética onde se está pisando. Por vezes, mesmo que seja por analogia, faz possível localizar-se. Assim, identifica-se as peculiaridades e complexidades ditadas pela montagem, de modo que surgem os recursos e ferramentas necessários para percorrer os desafios. Ocorre que, ao que me parece, Fernando tem para si que lida com o Besteirol em Camila Baker – e fez o que fez com a narrativa. Ele nos conta que o primeiro material que viu de Camila eram “cenas curtas hilárias”, e que depois pediu ao autor que as ligasse, construindo uma trama, por mais absurda que fosse. Pois bem, o que se tem é uma narrativa extremamente cansativa. A que podemos apelidar de fórmula ‘vai-e-vem’. A trama, que se propõe a contar as peripécias da excêntrica atriz Camila Baker, é narrada, rigidamente, de maneira que alterna cenas do presente e outras que revelam fatos e passagens experimentadas pela protagonista. Mas o ‘vai-e-vem’, contínuo e previsível, causa tédio. Tanto que já aos 52 minutos de peça, já nos causa certo aborrecimento.

Pulemos, pois, para a plástica do espetáculo, para em seqüência visitarmos os demais elementos. O cenário é de Zuarte Jr. Como sempre, Zuarte ajuda os diretores com quem trabalha e constrói um bom cenário: Funcional, sintético e comunicativo. Este cenógrafo tem um estilo de traços fortes, cortantes, que às vezes chegam a beirar o impressionismo e/ou surrealismo. Aqui, ele nos apresenta a sala da decadente mansão de Camila Baker. Sala cujas laterais e fundo estão vestidos por grandes cortinas de cores azuis (claro e escuro), púrpura e cinza. Ao fundo, existem duas grandes janelas, por onde já entram até frondosos galhos de árvores. Para conceber e executar o cenário, Zuarte, certamente, deve ter-se guiado pela indicação de uma das personagens, que já no início da peça se refere ao ambiente como “casa vazia e acabada. Onde já teve vida e festa.” E onde apenas sobraram “cupins, goteiras” etc. O cenário é habilidosamente equilibrado. À esquerda baixa nasce uma escada, daquelas de corrimão antigo, que leva aos aposentos de Baker. À direita baixa situa-se uma velha poltrona em perpendicular à platéia. Somam-se a isso duas cadeiras avulsas para serem usadas ao sabor das situações. No centro da sala, observamos um praticável, que faz as vezes de um palco dentro do palco; sendo ladeado à esquerda por um velho lustre; à direita por ma coluna grega em ruína; e ao fundo por uma [incógnita, para mim] caveira bovina. E é precisamente neste palco central onde ocorrem a maioria das cenas do passado de Camila. Ponto positivo para a iniciativa de escancarar a estrutura rústica do praticável, como a chamar atenção de que não se tem ali compromisso algum com resquícios de realismos. Isso, sim, é homenagem a teatralidade. No geral, o ambiente tem o clima de um cabaré aposentado.

A iluminação de Irma Vidal trabalha em sintonia com os outros elementos plásticos. Não distorce o cenário. Não anula o figurino. Não esconde os olhos dos atores. E é muito generosa com a maquiagem. Irma aqui trabalha com o magenta; o âmbar; e uma gradação de azuis claros e escuros, além de luz branca. Repete-se a conhecida característica desta iluminadora, a capacidade de oferecer eficácia.

Assim, é nesta atmosfera que os atores nos apresentam a trama de Camila Baker. São cinco intérpretes: todos estão bem. Fernando Marinho interpreta Camila Baker. Ele é um comediante de muitos recursos; porém, talvez pela maratona de troca dos inúmeros figurinos, demonstra cansaço já na primeira metade da peça. Destaque vai para seus trabalhos vocal e corporal. Diogo Lopes faz Genifer; Efigênia e uma Delegada. Diogo domina com vigor suas construções. Widoto Áquila faz a tia Dorothy. Executa boa performance; porém, me preocupo com sua construção vocal. Pois a fala que o bom Widoto criou para sua personagem cansa a ele e ao público. Pisit Mota faz o garoto Wolfgang. Seu desempenho não é de encher olhos nem ouvidos, mas não compromete o espetáculo. Poderia ter-se valido melhor da suposta cegueira do personagem - inclusive saí na dúvida se o tal era cego. Trata-se de um ator de espontaneidade e coragem reconhecidas, por outro lado, ainda aqui não conseguiu livrar o Wolfgang de um traço recorrente em suas construções – o fácil e cômodo tipo caipira. Na interpretação, o destaque mesmo vai para Rafael Medrado, a quem eu não conhecia. É surpreendentemente prazeroso vê-lo em cena. A Vírginia que ele criou foi digna do meu aplauso de pé. No geral, é audível o bom trabalho vocal dos atores, pena não ter conseguido identificar o preparador vocal. E acrescento ponto especial para atores e camareiros, pela quase perfeita relação com o tempo das incontáveis trocas de indumentárias. Miguel Carvalho, aliás, criou bons figurinos; que são imprescindíveis e, juntamente com a boa maquiagem de Marie Thauront, resultam e são responsáveis diretos pela satisfatória construção das personagens.

De outro lado, sigo afirmando que ‘Camila Baker’ não tem personalidade. E não tem estilo. A direção se furtou de compreender que espécie de “comédia estranha” é esta. E isto explica a verdadeira chuva de falas improvisadas (serão mesmo?) do tipo “parece que fugiu do micareta de Feira!”; ou, “Cê já tem outro emprego em vista?” Frases que, apesar de toda a bondade do público, já não empolgam. (com exceção do compositor Juca Chaves que se acabou de rir na poltrona vizinha). Talvez a incompreensão da verdadeira estranheza de sua criatura, faça o diretor permitir-se a determinados momentos daquilo que eu tenho chamado ‘ética do patético’, ou seja, o diretor de comédias tentando desesperadamente discutir sobre assuntos sérios ora em moda, tal qual a crítica ao politicamente correto, através do personagem de Pisit Mota quando pergunta ao outro “você é de cor? Tá aqui por causa das cotas?” Eis, exemplificado, o desarranjo generalizado do discurso do espetáculo.

A peça tem problemas de rítmo, time, compasso ou seja lá o nome que queiram os senhores. E isto já se nota em uma das cenas iniciais, como quando Camila e suas amigas pescam no rio. Os arranjos e trilha sonora de Marquinhos Carvalho ajudam, mas não o suficiente. O momento onde o rítmo funciona melhor é a cena entre Dorothy e Camila, num camarim da Rússia. O melhor momento do espetáculo é uma cena, verdadeiro número do bom non-sense, não sei se intencional, onde os personagens entrecruzam uma conversação que resulta em verdadeiros achados frasais, a ex. de “o cú é sagrado!” E “libertem o cú das convenções burguesas!” Se a montagem se resumisse somente a este esquete já valeria o bilhete pago. Mas não foi.

‘Camila Baker’ não é humor ácido nem estranho. Não mesmo. Não tem deboche nem escracho - porque para escrachar é preciso conhecer-se. É, no máximo, grotesco. Termino dizendo que na foto de capa do programa o Fernando Marinho está a cara da Débora Bloch.

Lembrete 3: voltarei a F. Guerreiro em crítica de seu outro espetáculo 'Pólvora e Poesia. Até lá, leitores!
Peça vista na sala do coro do TCA. Salvador. Bahia.

*besteirol 1 (texto sobre a estética do besteirol, H.L. Couto)

p/ Carolina.

Hedre Lavnzk Couto

'O Homem que nao dormia'

Edgar Navarro continua sendo a sombra pálida de um cineasta. A mais bastarda das viúvas de Gláuber. A melhor coisa daquela última noite de sexta-feira, no TCA, foi a bela surpresa do Curta 'olho de boi'. Tomara que este jovem diretor não siga, mais tarde, pelo caminho dos cogumelos desidratados.

PS: por falar nisso, por onde andará 'O Jardim das folhas sagradas', da outra viúva? Eu,de minha parte, continuo afirmando ser um desperdício de verbas públicas colocar dinheiro nestes pequenos envelopes de vaidades pessoais, sem consistência e desvalorados.

Hedre Lavnzk Couto