quarta-feira, julho 28

‘O Bem Amado’

Ao longo da primeira metade do século XX o comediante Procópio Ferreira era, sem dúvida, o ícone maior do teatro nacional, tinha sua própria Companhia de Teatro e lotava todas as casas de espetáculo por onde passava. Numa época onde ainda não havia a concorrência desequilibrante da televisão, ele faturou tanto dinheiro, que reza a leda esse artista dispunha de um restaurante dentro de casa, somente para atender aos amigos, que podiam esbaldar-se sem cerimônias das mais sofisticadas iguarias. Um dia, todavia, bate à porta do consagrado Procópio, no Rio de Janeiro, um jovem de dezessete anos. Magro e ainda com jeitão de menino do interior, mas já carregando seriedade e determinação no olhar, era o baiano Alfredo de Freitas Dias Gomes. Dias foi direto ao assunto: tinha escrito uma peça, a qual trazia consigo debaixo do braço, e o motivo da visita se resumia ao desejo de vê-la encenada e protagonizada pelo consagrado ator. Procópio, atônito, ficou no mínimo, impressionado, com a audácia daquele rapazote, prometendo-lhe que leria sua peça e que ele retornasse no dia seguinte. O fato é que Procópio leu... No dia seguinte lá estava o confiante Dias de volta, Procópio fez um suspense paternal... Depois lhe comunicou que lera a peça... tinha gostado! E iria montá-la já. O jovem assinou um contrato e ganhou um adiantamento correspondente a um ano de direitos autorais. Nascia ali um dos maiores dramaturgos brasileiros; o maior teledramaturgo brasileiro de todos os tempos, Dias Gomes.
Dias crescera em Salvador, pertencia a uma família abastada, teve ótima educação. No entanto, com a morte repentina de seu pai e, como a mãe não trabalhava, e como os parentes nestas horas sempre somem, passaram meses de fome. Naqueles tempos, muitas vezes, Dias teve de ir amenizar a dor do estômago num casarão da rua Araújo Pinho, no Canela, casa que pertencia a um de seus tios ricos, e que viria a se tornar a Escola de Teatro da Ufba, anos depois. Foi fugindo destas dificuldades que ele se mudou para o Rio em busca de oportunidades.
Fato é que na seqüência daquele bendito encontro com Procópio Ferreira as coisas mudaram para Dias Gomes. Ele começou e não pararia mais de escrever para o teatro, para o rádio (as saudosas rádio-novelas) e, posteriormente, novelas para televisão, uma trajetória profissional de consistente sucesso, que teria mais tarde em comum com aquela que viria a tornar-se sua esposa, a também grandíssima rádio e teledramaturga Janet Clear.
Apesar da mudança para o Sudeste o dramaturgo parecia não querer outro material ou inspiração, para alimentar suas obras, que não fossem aqueles temas intimamente ligados e vindos do estigma da gente simples e historicamente marginalizada dos interiores do Brasil, notadamente do interior nordestino. O povo, sobretudo, em sua rica perseverança diante dos desmandos e da nefasta e incessante exploração dos detentores do poder, o Povo é o herói de Dias. Em peças como o ‘O Santo Inquérito’; ‘O Berço do Herói’; ‘O Pagador de Promessas’; E ‘O Bem Amado’ Dias Gomes surge como um pioneiro do moderno teatro Brasileiro, tanto no tocante a forma quanto ao conteúdo. E alguns apressados me dirão – mas, Hedre... e onde você coloca o Nelson Rodrigues, o Jorge Andrade, o Vianinha, o Guarniere? – E eu responderei senhores: o Nelson é o nosso maior dramaturgo, o cara domina todas as ferramentas do troço teatral, mas sua preocupação social é bem mais restrita que a de Dias. O Jorge Andrade, com aquele seu ranço autobiográfico de aristocracia falida também se isola muito de questões mais amplas, embora seja um dos cinco grandes dramaturgos que tivemos. Já o Vianinha é um mestre da carpintaria teatral, ‘Rasga Coração’ é um clássico, mas é muito limitado ainda diante das questões profundas tocadas nos textos de Dias Gomes. Guaniere foi um ótimo ator.
Até hoje nenhum outro dramaturgo além de Dias Gomes pensou e analisou o Brasil de forma tão completa e contundente em suas idiossincrasias. Ele vai no ponto nevrálgico na exposição da gritante desigualdade sócio-econômica do País, escavando os motivos das distorcidas relações de poder no meio social, da desproporcional distribuição das riquezas, passando pela corrupção, e pela implacável exploração e manipulação do mais vulnerável pelos detentores do poder, sejam os ricos, os coronéis, os clérigos, os políticos de modo geral. Pouca gente ressalta isso, mas, Dias Gomes é interessantíssimo porque discute a sociedade, é um autor de tese. É um brutal observador das coisas práticas que movem a sociedade como ela é; tem um discurso afiado. E para canalizar esse discurso, Dias imprime uma linguagem inovadora: a começar pelo fato de seus personagens mostrarem e representar um ‘Brasilzão’ que até hoje existe, e que é a maioria de nós, que sustenta a economia do País, mas que muita gente finge ignorar, que é o Brasilzão dos grotões do interior do interior, com suas cidadezinhas-lugarejos, de nomes engraçados e sonoros, com seus ‘reizinhos Zé-roela’, e com seus ‘políticos pela-porco’, dominando e se impondo aos jecas locais simples e crédulos, às vezes famintos, às vezes oportunistas também, mas sempre entregues a própria sorte. E Dias como ninguém irá criar e reproduzir esses diversos tipos com maestria espantosa, conferindo-lhes um linguajar riquíssimo – prato cheio para amantes da Lingüística como eu – onde sempre é possível ouvir ‘aleijamentos’ de palavras como “construimento”; “demagojistas” ou mesmo “defuntamento”. Ele cria essas cidadezinhas, habita-as com esses personagens de nosso dia-dia imediato, e tais são o contexto e os conflitos que ele lhes pinta, que, através destes microcosmos “fictícios”, nos é passado pela cara o macrocosmo nosso de cada dia, que é o Brasil com suas mazelas e banguelas...

‘O Bem Amado’, nasce originariamente uma peça teatral, depois, o próprio Dias Gomes realiza sua adaptação para o formato de telenovela. Como Telenovela foi um dos maiores fenômenos da televisão brasileira, ao lado de outras novelas do próprio Dias - tal como ‘Roque Santeiro’, adaptação televisa da peça ‘O Berço do Herói’. Era o tempo dos grandes dramaturgos, hoje o que nos sobrou foi Glória Pérez. Com ‘O Bem Amado’ o Brasil se viu como poucas vezes. E por que se viu? Porque neste texto Dias Gomes foi a um só passo brilhante e generoso em nos apresentar uma tela, uma pintura, um espelho do que é, em sua visão crua e nua, a sociedade brasileira. Uma sociedade vítima de uma ferida aberta que sangra e gangrena desde o tempo das capitanias hereditárias: a corrupção. ‘O Bem Amado’ é uma alegoria do processo histórico e atual da relação da classe política com a coisa pública e com os ‘cidadãos normais’, os desprotegidos, sempre usurpados do direito de ter condições de vida menos injustas, pelas práticas desleais dos sabichões eleitos. Essa obra é uma metáfora usada pelo autor para provar sua tese de que o maior vilão dos problemas do Brasil é o político. E, algumas coisas parecem estar claras para Dias: a primeira é a constatação de que não há político cem por cento honesto. A outra é a conclusão de que ainda – dado que o povo não foi educado para exercer a cidadania - decididamente ainda não dá para culpar o eleitor pela reiterada escolha dos piores políticos. Por último que essa situação é um círculo vicioso, que tem sua origem ainda no modelo de colonização português, portanto, diz respeito a um fator cultural enraizado e, assim sendo, o dilema só poderá ser superado a longo prazo, investindo-se pesado em educação, em boa formação e informação. Informação é conhecimento, e quem não conhece não está apto a escolher, pelo menos não bem.
Em ‘O Bem Amado’ de um lado estão os políticos da situação, o prefeito e seus correligionários; do outro está a oposição, comunista, esquerda vermelha e dita munida das mais santas intenções; no meio está o Povo, ‘levando fumo’, refém da mentira e dos jogos de interesses mais obscuros, massa de manobra para que tanto a direita quanto a esquerda alcancem o seu sonho de consumo, que é unicamente o Poder. Dias nos mostra que trata-se de pura ilusão a visão maniqueísta de pensar que em política - como alguns iludem e outros são iludidos a acreditar - existem de um lado santos, e de um outro, canalhas . Santos não existem. E o que revela a canalhice em política é a conveniência, a oportunidade.
Característica das grandes obras de arte é ser atemporal e universal, perduram. ‘O Bem Amado’ se encaixa plenamente em ambos os aspectos. Pegando como exemplo a atemporalidade, note-se a impactante atualidade da peça. Basta observar o cenário político do Brasil. ‘Como nunca antes na história deste país’ a corrupção política esteve tão disseminada; como nunca antes na história deste país o povo foi tão manipulado e teve sua ignorância usada como massa de manobra; como nunca antes na história desse país os políticos estiveram tão ávidos em busca do “poder pelo poder”. Quer uma prova? Hoje temos de um lado a situação (a esquerda populista, mentirosa e perigosa!) e do outro a oposição (a direita velha, ultrapassada, mesquinha e burra!); e verificamos tal quadro ás vésperas de uma eleição, isso depois da direita – hoje oposição – ter passado oito anos no Poder; e após a esquerda – hoje situação – estar completando oito anos no Planalto, sustentada nas asas do nosso senhor Jesus cristo (isto é, Lula!). Agora eu pergunto: algum Ser vivo com alguma grama de massa cefálica no cabeção ainda acredita que existe – notadamente no Brasil – alguma diferença pragmática entre os citados partidos, que, ainda justifique essa dicotomia ‘esquerda-direita’ política? Outra pergunta: alguém já pegou pra ler as propostas programáticas dos futuros possíveis governos da situação ou da oposição? Se pegarem verão que os presidenciáveis não têm propostas concretas, e que tais documentos são idênticos em cretinice, divagação. E, além desse problema gravíssimo de pessoas quererem governar o país sem um programa sólido, no Brasil não temos a tradição de eleger propostas de um partido no qual confiamos. Ao contrário, elegemos pessoas. João e Maria nunca votam no programa de governo do partido "Tal", através do qual Petrúcia se candidatou à Presidente da República, não! João e Maria votam em Petrúcia porque ela tem uma voz bonita, fez uma plástica e agora se parece com Michael Jackson, e além disso é a preferida do quase ex presidente. Daí temos dois graves problemas: o povo não é (bem) informado o suficiente para votar, não tem formação de cidadania, e no atual estágio lamentam muito mais se votaram no Big Brother errado do que se elegeram um político corrupto. O outro problema: a profissionalização da política, já observada por muitos analistas como um nonsense social. É de novo a corrida ‘poder pelo poder’. O sujeito se elege uma vez e não quer mais sair de cima da carne seca. Antes quer é colocar toda a família no ramo! E o que vemos é o que está ai, sempre a mesma cara, tanto nos cargos eletivos, como nos cargos de confiança, e nas Empresas Públicas. Trata-se do aparelhamento ou loteamento da máquina Estatal. Ao invés de técnicos preparados coloca-se os amigos que não conseguiram elegerem-se. E tudo isso produz conseqüências danosas nas vidas das pessoas, mas elas não foram educadas para enxergar. O cara vem e diz: “ocês vai eleger Michael Jackson para presidente!” João e Maria não pensam duas vezes, obedecem a Jesus Cristo. ‘who´s bad?’
Ah é mesmo... Ainda tenho que falar sobre o bendito do filme do Guel Arraes.

Alguém sabe alguma oração forte? Não riam. Bom, Essa adaptação de ‘O Bem Amado’ de Guel Arraes Globo Filmes para o cinema, me fez recordar uma frase que um velho professor sempre repetia: “se um sujeito quer fazer uma bobagem, por que não a escreve? Por que destruir o texto de alguém que trabalhou duro?” A frase original tem muitos palavrões, não ouso repetir aqui, crianças lêem o Blog. Bom, aí eu me pergunto: um cara como Arraes tem tudo para fazer um filmaço e toda vez é assim: inclassificável. Tem patrocínio da PETROBRÁS e do BNDES, tem estrutura, tem bons atores, tem o texto de ‘O Bem Amado’, tem o momento político certo do país para estrear o filme e... eu não vou falar desse negócio gente. Tá bom, pensem em algo muito ruim que já viram no cinema... agora... pensem de novo.... isso... agora vão pensando, pensando, pensando, pensando... e vão ver o novo filme de Tarantino que é muito bom!

O Brasil está há 500 anos dentro da caverna de Platão... e a única chance de sair será pela educação... Mas antes, alguns vários jovens precisarão se interessar por política partidária.

Hedre Lavnzk Couto.

Texto dedicado a Drica Moraes. Ela que está no elenco desse Filme. Mas que se salva. Drika é uma atriz incrível que transita magistralmente entre o drama e a comédia. A primeira vez que a vi em cena foi em Mandacarú, novela da antiga Rede Manchete. Torço para que ela se cure inteiramente o quanto antes. Saúde, Drica!

Um comentário:

  1. "E Dias como ninguém irá criar e reproduzir esses diversos tipos com maestria espantosa, conferindo-lhes um linguajar riquíssimo – prato cheio para amantes da Lingüística como eu – onde sempre é possível ouvir ‘aleijamentos’ de palavras como “construimento”; “demagojistas” ou mesmo “defuntamento”."

    Dá pra notar então que o Dias era um cara a frente do seu tempo, pois já dava seu jeitinho de discutir questões linguísticas antes mesmo nas novas concepções linguísticas modernas.

    Numa mesa de bar você falou que o teu texto era grande, e ele realmente é big. Rsrsrsrs... Diria que assim foi porque o filme pareceu te causar uma espécie de catarse, a qual descarregou fazendo junção de letras e idéias.

    Gostei de várias associações de idéias e críticas que fez. Você se envolveu com o texto que quase esqueceu de falar do filme. Nessa brincadeira, envolveu o leitor, que também já nem lembrava que tinha clicado nesse post para ler uma crítica sobre o filme. Hahahahahaa...

    Prazer em te conhecer, caro Couto.

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