quarta-feira, maio 23
"Os Corvos"
'O Corvo', de James McTiegue, atualmente em cartaz, só tem de razoável a fotografia. Interpretação pastelônica. Diálogos sofríveis.Voltei do cinema e vi o homônimo, de 1935, com o impagável Bela Lugosi. Bem mais cinema. Vejam!
terça-feira, maio 22
Orson Welles e John Cassavetes são os dois únicos homens dos quais tenho inveja na vida:
De Welles, o perfeito Cidadão Kane não é o meu preferido. Deus sabe como gostaria de ter feito os seus assombrosos 'Othello'; e 'Macbeth'. Perto dessas duas obras de Orson, Sir Laurence mais parece uma donzela lânguida.
De Cassavetes, o diabo bem sabe que eu, de bom grado, lhe teria vendido minha alma para ter feito 'Sombras'; 'Faces'; e 'Noite de Estréia'.
Aliás, o roteiro de Noite de Estréia, bem adaptado, poderia originar um espetáculo marcante. Cadê a coragem dos diretores? Há vida além do puro entretenimento, senhores...
Hedre Lavnzk Couto
De Cassavetes, o diabo bem sabe que eu, de bom grado, lhe teria vendido minha alma para ter feito 'Sombras'; 'Faces'; e 'Noite de Estréia'.
Aliás, o roteiro de Noite de Estréia, bem adaptado, poderia originar um espetáculo marcante. Cadê a coragem dos diretores? Há vida além do puro entretenimento, senhores...
Hedre Lavnzk Couto
terça-feira, maio 8
Crítica do espetáculo
‘Homens Que Amam Demais’
Está em cartaz desde a última sexta-feira, no Teatro Gamboa
Nova, a peça ‘Homens Que Amam Demais’. Dirigido por Caíca Alves, que também integra
o elenco junto a Daniel Becker, o trabalho tem sido divulgado como um espetáculo
musical que, se valendo da mistura de escritos filosóficos com a Canção brega
das décadas de 60 e 70, pretende discutir o amor, e as relações afetivas entre
homens e mulheres.
O que se verifica no palco, no entanto, é um robusto desfile de problemas estruturais, técnicos, conceituais e, sobretudo, ausência de talento artístico. Homens Que Amam Demais não foge à regra, ora em moda na Cidade do Salvador, onde os realizadores de teatro melhor escrevem a respeito, do que materializam suas obras, propriamente. No projeto, no folder, nas entrevistas existe todo um aparato teórico, quase acadêmico – na verdade, na maioria das vezes pura cultura de almanaque – porém, quando sentamos diante das peças, elas são vergonhosamente frágeis.
Caíca Alves denomina sua encenação de ‘espetáculo musical’. Bobagem, não há nada de musical nele, está mais para karaokê de fim de festa. Nem Alves nem Becker sabem cantar (a direção de canto feita pela cantora Manuela Rodrigues não alcançou efeito positivo algum), muito menos tocar instrumentos, mesmo assim, somos obrigados a presenciar um dos atores espancar um pobre violão. Tempos atrás, publiquei neste espaço crítica do espetáculo Thomas Toma Blues, que também se pretendia musical. Bom, se ‘Thomas’ foi um fiasco, remeto o leitor àquele texto, e assim entenderão as referências que tenho para me impacientar com ‘Homens que Amam Demais’...
Segundo Caíca, o material fonte que originou o texto da peça
é composto a partir de obras de dois pensadores bastante lidos nas últimas
décadas: de Roland Barthes o espetáculo teria bebido no conteúdo de ‘Fragmentos
de um discurso amoroso’; e do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, teriam buscado
elementos em ‘Amor Líquido – Sobre as fragilidades dos laços humanos’.
Barthes, que morreu em 1980, singelamente atropelado em uma
rua de Paris, é reconhecido por ter traçado uma minuciosa crítica do vazio das
atitudes sociais e cotidianas do homem moderno. Já Bauman, é um dos autores mais
respeitados e devorados da atualidade, com mais de 50 livros publicados,
destacado-se ainda ‘Vida Líquida’; ‘Tempos Líquidos’; ‘Modernidade Líquida’;
Cartas ao Mundo Líquido Moderno’ entre outros. Em seus estudos ele aborda a obsessão
pelo corpo ideal; o culto às celebridades; o endividamento geral; a paranoia
com segurança; e, exaustivamente, a instabilidade nos relacionamentos amorosos.
Podemos defini-lo como um pensador obsessivo pela reflexão a respeito dos vínculos
humanos: “vivemos tempos líquidos. Nestes dias, tudo muda rapidamente. Nada é feito
para durar, para ser sólido”.
Neste sentido, Zygmunt Bauman afirma que “Amor líquido é um
amor ‘até segundo aviso’, o amor a partir do padrão dos bens de consumo:
mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que
prometem ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação imediata
e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma ‘líquida’,
o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser
feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom
lembrar que o amor não é um ‘objeto encontrado’, mas um produto de um longo e
muitas vezes difícil esforço e de boa vontade”.
Bauman é um pensador interessante. O problema é que ele
adora vender livros. E, por vezes, torna-se propositadamente prolixo. Então, extremamente
prolífico e editado, converteu-se em figurinha fácil nas bocas de intelectuais
e artistas de ocasião. Hoje, Bauman é um dos maiores clichês mundiais. E isso é
verdadeiramente, lamentável. Não faz tanto tempo assim, publiquei crítica do
espetáculo ‘Alugo minha Lígua’, cujo texto ruim, do bom Gil Vicente Tavares, também
se diz inspirado em Bauman... Remeto o leitor àquele texto... para melhor
dialogarmos.
O problema de ‘Homens Que Amam Demais’, frise-se, não é a
ideia de mesclar filosofia com as músicas de Valdick Soriano, Lindomar Castilho,
Fernando Mendes, Aguinaldo Timóteo e Reginaldo Rossi. O problema mora na patente incompetência da direção,
e inaptidão dos artistas envolvidos, em transformar tal mistura em arte. Tomou-se
a opção mais fácil: fazer caretas, olhos esbugalhados, línguas de fora, ‘efeitinhos’
guturais... enfim, em Homens Que Amam Demais parece haver uma tentativa tosca
de se reproduzir as performances do humorista Renato Piaba... E como sabemos R.
Piaba é inimitável em sua Coisa...
O cenário de Agamenon de Abreu é um amontoado indecifrável –
qual era a proposta? A iluminação, cadê? O texto, cujo autor não foi revelado,
contém muitos (!) equívocos primários de Língua Portuguesa. Uma vergonha. Que só
vem a comprovar em público que sobre nossos palcos, a despeito dos vários
mestres e doutores em teatro, temos diversos analfabetos funcionais. Caíca Alves
não tem dicção, antes, um bolo vocal inominável que escapa de sua boca. Becker,
tal qual fez em ‘Diário de um Farol’, apenas grita. Becker é talvez o maior
gritador do teatro baiano.
Mais uma vez uma tentativa fracassada de se realizar o tal
do ‘teatro musicado’ entre nós. O teatro
na Bahia segue Líquido como sempre. Um maldoso diria “liquidado”, como sempre...
NÃO RECOMENDO.
NÃO RECOMENDO.
PS.: Onde está ‘O Sumiço da Santa’, de F. Guerreiro? Sumiu?
P/ Carolina
Hedre Lavnzk Couto
sábado, abril 28
Crítica do espetáculo
‘Ensaio de Casamento’
Experimentam os delicados imprevistos daquela que parece ser
uma crise conjugal definitiva. Como se não bastasse, são companheiros de
profissão: estão no meio da montagem de um espetáculo do qual são os protagonistas.
Ela, atriz. Ele, dramaturgo, diretor, ator. Os desafios, amores e odores da
vida a dois parecem ter produzido, em ambos, uma indagação interna, para si e
para o outro – “será que vamos continuar?” Tal é o roteiro daquilo que, pouco a
pouco, eles tentam encarar como sendo sua “peça de separação”.
O ponto mais consistente de ‘Ensaio de Casamento’, que é
dirigido por Najda Turenkko, é o texto, de Wanderley Meira. Se, por um lado a
temática e o estilo de jogo almejado com a trama não chegam a ser originais, de
outro, não se pode negar tratar-se de uma investida dramatúrgica bem
interessante. Meira deveria escrever mais.
O que define o espetáculo, entretanto, é a direção falha de
Turenkko. A diretora ficou longe de
conseguir acompanhar as peculiares exigências de um texto que requer uma
minuciosa concepção de metalinguagem. Percebe-se que o objetivo do dramaturgo é
compor uma atmosfera de aguda justaposição entre vida e arte, realidade e
teatro, representação e verdade, espetáculo e cotidiano. Mas a encenação não
alcança as ambições do material base.
A concepção espacial, que tenta materializar em cena a fusão
afetiva e profissional do casal, com vistas a sugerir um turbilhão, uma desordem
existencial, afasta-se de qualquer viabilidade e coerência interna, na medida
em que se esquece de que o caos da vida é um; e outro, bastante diferente e
difícil de ser alcançado, é o caos artístico, para o qual se faz necessário
conceito e esmero técnico. A plástica da peça, notadamente a cenografia, de
Maurício Cardoso, e a Iluminação de Irma Vidal, não ajudam. Não se consegue
decodificar a construção cenográfica. De
maneira semelhante, difícil acreditar que a luz seja de Irma Vidal, ela assina,
mas nada lembra a excelência costumeira dos trabalhos de Irma. Um desenho de
luz grosseiro, composições de áreas e ambientes descabidas, transições
injustificadas.
No que toca à interpretação, os desempenhos dos atores
Wanderley Meira e Maria Marighella encontram-se bastante nivelados. Ele parece
concordar comigo quando da plateia vejo em cena um dramaturgo promissor. Já,
como ator, Meira rende-se às formas, a uma interpretação oca, parece gostar de
ser visto como exímio canastrão. Maria Marighella tem performance lamentável.
Atriz sem recursos corporais, [e vocais!] Trata-se de uma “voizinha”
infantilizada, nasalizada, extremamente desagradável de se ouvir. Marighela e
Meira quando ao longo do espetáculo representam passagens das peças Otelo;
Romeu e Julieta; e A Megera Domada, de W. Shakespeare, patinam em ridículo extremo.
Percebemos que eles até levam o velho inglês a sério, tentam interpretá-lo numa
missão desesperada, mas não conseguem esboçar o mínimo vigor dramático.
Turenkko e seus atores acabaram por debilitar aquela que
seria uma situação dramática de bom potencial. E o resultado de sua encenação
surge apenas como um opaco espelho de pretensa gente de teatro para pretensa
gente de teatro. Limitado, de maneira nenhuma o espetáculo afasta-se daquele
tão malfadado costume umbilical.
Contudo, ainda pelo texto: Teatro Sesc Pelourinho, às
sextas, sábados e domingos, às 20 horas.
Ps.: Sugiro-lhes o filme ‘Império dos Sonhos’, do diretor
David Lynch. Um verdadeiro tratado artístico de como se trabalhar o jogo da
metalinguagem, misturando vida real e ficção.
Hedre Lavnzk Couto
segunda-feira, abril 23
Crítica do espetáculo ‘O Canto do Cisne’
Um velho ator cômico que, embriagado, havia adormecido na coxia, desperta e quando retorna ao palco, percebe que o espetáculo já findou e o público já se foi. Daí em diante o espectador é conduzido a saber um pouco mais sobre o que Vassíli Vassílitch Svetiovídov fez dos seus sessenta e oito anos de vida, a grande maioria deles dedicados ao teatro. A princípio, sozinho e, mais a frente em companhia de Nikita Iványtch, um velho ‘ponto’, Vassíli alterna picos de nostalgia e euforia, recorda e revive os grandes momentos que experimentara sobre o tablado. Ao longo de toda uma madrugada, na solidão de um palco vazio e de uma plateia ausente, dois personagens nos mostram o quão dor e alegria são as faces de uma mesma moeda – a arte!
Escrito por Anton Tchekhov, maior dramaturgo russo, O canto do Cisne foi chamado pelo autor de ‘estudo dramático em um Ato’. Faz parte assim daquele grupo das denominadas ‘peças curtas’ de Tchekhov. Porém, essas comédias de menor extensão nada deixam a desejar em profundidade e maestria às outras peças do escritor, como ‘O Tio Vania’; ‘As Três irmãs’; ‘A Gaivota’ entre outras. São textos que exigem grande imersão dos artistas, compreensão e interpretação apurada por parte da direção e atores. E o Canto do Cisne, notadamente, um texto dramático, não deixa de assustar e comover o espectador ao exalar um lirismo tão agudo e cortante quanto aquele presente nos melhores textos de S. Beckett.
A montagem que ora se encontra em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, com direção de Bruno Bozetti, não é técnica, nem apurada, nem sofisticada, nem sustenta pretensões de grandiosidade. Mas, misteriosamente traz algo de mágico. De verdadeiro. De honesto. A montagem de Bozetti é um estranho encanto. Se sua inexperiência na direção de atores resulta no sacrifício de parte importante da grandeza psicológica dos personagens tchekhovianos, bem como na limitação dos pequenos detalhes da contracena e da mise-en-scène, o terço inicial e o terço final de sua peça alcançam momentos de entusiasmante beleza.
De todo modo, simplicidade não pode ser confundida com acomodação. A interpretação e a função cênica do personagem de Rai Alves (Nikita) merecem ser melhor trabalhadas. Às vezes temos a impressão de que ele não sabe onde se posicionar em cena. Outras vezes, Alves finge chorar, o que se tratando de dramaturgia russa, escorre no ridículo. Já a interpretação de Inaldo Santana – que nos brinda com momentos tocantes – precisa ser aprimorada, mais bem cuidada. Bruno deveria rever certas transições emocionais, aperfeiçoar mesmo a compreensão do texto. Talvez fosse interessante voltar um pouco aos trabalhos de leitura de mesa. Por várias vezes Inaldo passa ao largo de sutilezas, que Tchekhov coloca como essenciais para a força total da situação dramática. A dicção de Santana também pode obter melhores resultados. A produção do espetáculo esqueceu-se de creditar a tradução do texto original. Quem é o tradutor?
Os artistas de teatro em salvador temem Anton Tchekhov. Devagarzinho quem sabe isso mude. A dramaturgia russa é uma verdadeira escola de arte dramática, senhores. E, Fernando Guerreiro, estamos esperando que você se anime a nos presentear com um dos clássicos russos, tão atuais...
Hedre Lavnzk Couto
Escrito por Anton Tchekhov, maior dramaturgo russo, O canto do Cisne foi chamado pelo autor de ‘estudo dramático em um Ato’. Faz parte assim daquele grupo das denominadas ‘peças curtas’ de Tchekhov. Porém, essas comédias de menor extensão nada deixam a desejar em profundidade e maestria às outras peças do escritor, como ‘O Tio Vania’; ‘As Três irmãs’; ‘A Gaivota’ entre outras. São textos que exigem grande imersão dos artistas, compreensão e interpretação apurada por parte da direção e atores. E o Canto do Cisne, notadamente, um texto dramático, não deixa de assustar e comover o espectador ao exalar um lirismo tão agudo e cortante quanto aquele presente nos melhores textos de S. Beckett.
A montagem que ora se encontra em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, com direção de Bruno Bozetti, não é técnica, nem apurada, nem sofisticada, nem sustenta pretensões de grandiosidade. Mas, misteriosamente traz algo de mágico. De verdadeiro. De honesto. A montagem de Bozetti é um estranho encanto. Se sua inexperiência na direção de atores resulta no sacrifício de parte importante da grandeza psicológica dos personagens tchekhovianos, bem como na limitação dos pequenos detalhes da contracena e da mise-en-scène, o terço inicial e o terço final de sua peça alcançam momentos de entusiasmante beleza.
De todo modo, simplicidade não pode ser confundida com acomodação. A interpretação e a função cênica do personagem de Rai Alves (Nikita) merecem ser melhor trabalhadas. Às vezes temos a impressão de que ele não sabe onde se posicionar em cena. Outras vezes, Alves finge chorar, o que se tratando de dramaturgia russa, escorre no ridículo. Já a interpretação de Inaldo Santana – que nos brinda com momentos tocantes – precisa ser aprimorada, mais bem cuidada. Bruno deveria rever certas transições emocionais, aperfeiçoar mesmo a compreensão do texto. Talvez fosse interessante voltar um pouco aos trabalhos de leitura de mesa. Por várias vezes Inaldo passa ao largo de sutilezas, que Tchekhov coloca como essenciais para a força total da situação dramática. A dicção de Santana também pode obter melhores resultados. A produção do espetáculo esqueceu-se de creditar a tradução do texto original. Quem é o tradutor?
Os artistas de teatro em salvador temem Anton Tchekhov. Devagarzinho quem sabe isso mude. A dramaturgia russa é uma verdadeira escola de arte dramática, senhores. E, Fernando Guerreiro, estamos esperando que você se anime a nos presentear com um dos clássicos russos, tão atuais...
Hedre Lavnzk Couto
segunda-feira, abril 16
Crítica do espetáculo 'A Mulher de Roxo'
Já vi muitas peças do diretor Deolindo Checcucci. E gostei bastante de ‘Asa Branca’; ‘Maria Quitéria’; ‘Raul seixas’, e ‘Eu, Brecht’. Mas, sobretudo, passei a admirar e respeitar o trabalho de Checcucci quando assisti sua memorável encenação de ‘Na Selva das Cidades’ (1996). Essa foi talvez a melhor peça de teatro já vista por mim em Salvador. Não sou muito inclinado a adjetivos, mas, Na Selva das Cidades foi (na verdade, ainda é, porque Deolindo o tem em DVD) um objeto artístico esplendoroso, positivamente impressionante sob todos os aspectos.
Conheci o texto de ‘A Mulher de Roxo’ quando Deolindo foi meu professor de Cenografia 1, na hoje agonizante Escola de Teatro da UFBA. Naquela oportunidade, por generosidade, Deolindo dividia habitualmente conosco muito da riqueza de sua vasta experiência de homem de teatro. Assim, mais de uma vez nos levou textos de sua autoria para discutirmos, principalmente sob os aspectos correlatos à cenografia.
Segundo o diretor, o desejo de escrever uma peça sobre a enigmática mulher de roxo emergiu com grande força quando, por acaso, leu um artigo jornalístico que tentava lançar mais um olhar sobre a aura da peregrina que por décadas conferiu, assiduamente, ares de espetacularidade à rua Chile e ao centro velho de Salvador.
Recordo-me que em sala de aula realizamos leituras do texto. Mas, de cara, constatei que possuía narrativa muito frágil, limitada, para se buscar dar conta de transmitir algo semelhante àquele impacto que todos sentiam ao se deparar com a fascinante dama de roxo, quase sempre majestosamente protagonista à porta da extinta loja Slopper. Pensei então que o texto tratasse de uma primeira versão e que, pelo menos, ao longo do processo de montagem Deolindo procederia às necessárias modificações...
Mas não é o que se vê na encenação ora em cartaz no Teatro Martim Gonçalves. É verdadeiramente uma pena, mas, ‘A Mulher de Roxo’ desmerece o vigor do repertório artístico de D. Checcucci. Trata-se de espetáculo inconsistente. Ao longo dos seus quase setenta minutos, a peça não varia de um constrangedor tom de “ensaião”. Falta ritmo, engrenagem. Restando a certeza de que algo faltou ser atingido, alcançado, maturado.
E a raiz maior do problema mora na opção dramatúrgica. Uma estrutura narrativa que desesperadamente anseia dar conta de toda a biografia da personagem. E se a previsibilidade do desenho início-meio-fim, não chegou a prejudicar os outros espetáculos do diretor, neste atual lhe foi um complicador decisivo para o aspecto geral da obra. O enredo se desenrola de maneira atipicamente apressada, diálogos amontoam-se de maneira incompreensível, as emoções afloram precipitadamente. E o resultado: a peça não consegue dar conta da grandiosidade mítica da Mulher de Roxo.
E se a direção optou por estabelecer uma fábula linear, mostrando-nos todas as fases e principais vicissitudes experimentadas pela protagonista no transcorrer de sua vida, esse didatismo exacerbado fez com que se perdesse o que de mais forte e interessante existe em torno do mito. Num verdadeiro desperdício, acreditem, a Mulher de Roxo, tal qual eternizada e multiplicada no imaginário popular de três milhões de soteropolitanos, aparece em cena, envolvida em seu Hábito roxo, apenas uma vez, nos instantes finais da peça. Assim, diluiu-se toda a riqueza da estória [e da história], perdeu-se na incompletude do fazer artístico todo o fascínio, o mistério, o verdadeiro arrebatamento poético contido na lenda urbana.
O trabalho de Deolindo se contenta em ser meramente documental (na verdade, uma versão de fatos reais) ao invés de ousar sugerir sensações inesquecíveis ao espectador. Se dizem que aqueles que viram a Mulher de Roxo jamais a esquecem, que competente seria um espetáculo que conseguisse artisticamente traduzir uma fatia dessa emoção para os menos afortunados que não tiveram a oportunidade de vê-la de perto.
A dinâmica do espetáculo possui seríssimos problemas. Se em ‘Maria Quitéria' e ‘Asa Branca’ Deolindo consegue imprimir a quase perfeita medida, dotando todos os elementos do espetáculo de eficiente interação; em A Mulher de Roxo, as escolhas quanto ao estabelecimento de núcleos dramáticos, criação de ambientes e atmosferas, bem como as transições entre cenas e quadros são desafinadas, provocando repetidos buracos que vão ralentando e travando a narrativa, certamente comprometendo o interesse do espectador. A cenografia não é bem talhada para as especificidades do palco à italiana do Martim Gonçalves. Também os atores ao trabalharem com cenário e adereços, principalmente em momentos onde têm de montar e desmontar o ambiente, o fazem de maneira suja, mostrando deficiência de ensaio.
Na verdade não há harmonia nem sincronia entre cenografia, composição musical, iluminação e atuação dos atores. Isso, aliado a um desenho de cena superficial e rígido, resultou no visível desarranjo do andamento cênico. Contudo, depois do texto, a iluminação foi o elemento que mais prejuízos causou ao espetáculo. A escolha aparentemente aleatória de lentes e a opção geral por cores quentes e luz aberta causam uma confusão plástica que produz uma sensação de afastamento.
Frise-se, ainda, que os diálogos são improváveis, sem a menor organicidade ou força psicológica, o que, sem dúvida, cria grande dificuldade para os atores delinearem seus personagens e sustentarem suas contracenas. Selma Santos está muito aquém de uma Mulher de Roxo. Talvez o fato de interpretar todas as idades da personagem tenha sobrecarregado sua dedicação e atrofiado seu desempenho. Seus piores momentos são aqueles onde o texto é em verso. Sua declamação precisa ser melhor trabalhada, se declamar ali for o objetivo. No geral, em cena, vê-se, de ponta a ponta, uma protagonista apagada, sem luz e "sem roxo". Não notamos em cena aquela força cênica que deve diferenciar uma protagonista de seus coadjuvantes.
O que temos em A Mulher de Roxo é um texto que pendula de maneira incerta e injustificada do lírico ao drama, causando um destempero cênico. A encenação, por sua vez, não criou mecanismos para superar tais limitações de uma dramaturgia já originariamente engessada. Disse a vocês aqui, há uma semana, que guardava boas expectativas para esse novo trabalho de Checcucci. Infelizmente...
Esperava que Deolindo fizesse, tal qual fez em Na Selva das Cidades, um espetáculo escandalosamente expressionista. Sim. Porque penso que a forma mais rica de se abordar um pretexto como a Mulher de Roxo é conferir à encenação uma estética cuidadosamente expressionista, onde essa Mulher, essa “Rainha”, essa entidade enigmática e polissêmica, possa projetar e materializar sobre o palco todas as suas contradições e fantasmas, dando assim vazão com plenitude às suas diversas facetas , que são, sobretudo, grande composição do imaginário popular.
Hedre Lavnzk Couto
Conheci o texto de ‘A Mulher de Roxo’ quando Deolindo foi meu professor de Cenografia 1, na hoje agonizante Escola de Teatro da UFBA. Naquela oportunidade, por generosidade, Deolindo dividia habitualmente conosco muito da riqueza de sua vasta experiência de homem de teatro. Assim, mais de uma vez nos levou textos de sua autoria para discutirmos, principalmente sob os aspectos correlatos à cenografia.
Segundo o diretor, o desejo de escrever uma peça sobre a enigmática mulher de roxo emergiu com grande força quando, por acaso, leu um artigo jornalístico que tentava lançar mais um olhar sobre a aura da peregrina que por décadas conferiu, assiduamente, ares de espetacularidade à rua Chile e ao centro velho de Salvador.
Recordo-me que em sala de aula realizamos leituras do texto. Mas, de cara, constatei que possuía narrativa muito frágil, limitada, para se buscar dar conta de transmitir algo semelhante àquele impacto que todos sentiam ao se deparar com a fascinante dama de roxo, quase sempre majestosamente protagonista à porta da extinta loja Slopper. Pensei então que o texto tratasse de uma primeira versão e que, pelo menos, ao longo do processo de montagem Deolindo procederia às necessárias modificações...
Mas não é o que se vê na encenação ora em cartaz no Teatro Martim Gonçalves. É verdadeiramente uma pena, mas, ‘A Mulher de Roxo’ desmerece o vigor do repertório artístico de D. Checcucci. Trata-se de espetáculo inconsistente. Ao longo dos seus quase setenta minutos, a peça não varia de um constrangedor tom de “ensaião”. Falta ritmo, engrenagem. Restando a certeza de que algo faltou ser atingido, alcançado, maturado.
E a raiz maior do problema mora na opção dramatúrgica. Uma estrutura narrativa que desesperadamente anseia dar conta de toda a biografia da personagem. E se a previsibilidade do desenho início-meio-fim, não chegou a prejudicar os outros espetáculos do diretor, neste atual lhe foi um complicador decisivo para o aspecto geral da obra. O enredo se desenrola de maneira atipicamente apressada, diálogos amontoam-se de maneira incompreensível, as emoções afloram precipitadamente. E o resultado: a peça não consegue dar conta da grandiosidade mítica da Mulher de Roxo.
E se a direção optou por estabelecer uma fábula linear, mostrando-nos todas as fases e principais vicissitudes experimentadas pela protagonista no transcorrer de sua vida, esse didatismo exacerbado fez com que se perdesse o que de mais forte e interessante existe em torno do mito. Num verdadeiro desperdício, acreditem, a Mulher de Roxo, tal qual eternizada e multiplicada no imaginário popular de três milhões de soteropolitanos, aparece em cena, envolvida em seu Hábito roxo, apenas uma vez, nos instantes finais da peça. Assim, diluiu-se toda a riqueza da estória [e da história], perdeu-se na incompletude do fazer artístico todo o fascínio, o mistério, o verdadeiro arrebatamento poético contido na lenda urbana.
O trabalho de Deolindo se contenta em ser meramente documental (na verdade, uma versão de fatos reais) ao invés de ousar sugerir sensações inesquecíveis ao espectador. Se dizem que aqueles que viram a Mulher de Roxo jamais a esquecem, que competente seria um espetáculo que conseguisse artisticamente traduzir uma fatia dessa emoção para os menos afortunados que não tiveram a oportunidade de vê-la de perto.
A dinâmica do espetáculo possui seríssimos problemas. Se em ‘Maria Quitéria' e ‘Asa Branca’ Deolindo consegue imprimir a quase perfeita medida, dotando todos os elementos do espetáculo de eficiente interação; em A Mulher de Roxo, as escolhas quanto ao estabelecimento de núcleos dramáticos, criação de ambientes e atmosferas, bem como as transições entre cenas e quadros são desafinadas, provocando repetidos buracos que vão ralentando e travando a narrativa, certamente comprometendo o interesse do espectador. A cenografia não é bem talhada para as especificidades do palco à italiana do Martim Gonçalves. Também os atores ao trabalharem com cenário e adereços, principalmente em momentos onde têm de montar e desmontar o ambiente, o fazem de maneira suja, mostrando deficiência de ensaio.
Na verdade não há harmonia nem sincronia entre cenografia, composição musical, iluminação e atuação dos atores. Isso, aliado a um desenho de cena superficial e rígido, resultou no visível desarranjo do andamento cênico. Contudo, depois do texto, a iluminação foi o elemento que mais prejuízos causou ao espetáculo. A escolha aparentemente aleatória de lentes e a opção geral por cores quentes e luz aberta causam uma confusão plástica que produz uma sensação de afastamento.
Frise-se, ainda, que os diálogos são improváveis, sem a menor organicidade ou força psicológica, o que, sem dúvida, cria grande dificuldade para os atores delinearem seus personagens e sustentarem suas contracenas. Selma Santos está muito aquém de uma Mulher de Roxo. Talvez o fato de interpretar todas as idades da personagem tenha sobrecarregado sua dedicação e atrofiado seu desempenho. Seus piores momentos são aqueles onde o texto é em verso. Sua declamação precisa ser melhor trabalhada, se declamar ali for o objetivo. No geral, em cena, vê-se, de ponta a ponta, uma protagonista apagada, sem luz e "sem roxo". Não notamos em cena aquela força cênica que deve diferenciar uma protagonista de seus coadjuvantes.
O que temos em A Mulher de Roxo é um texto que pendula de maneira incerta e injustificada do lírico ao drama, causando um destempero cênico. A encenação, por sua vez, não criou mecanismos para superar tais limitações de uma dramaturgia já originariamente engessada. Disse a vocês aqui, há uma semana, que guardava boas expectativas para esse novo trabalho de Checcucci. Infelizmente...
Esperava que Deolindo fizesse, tal qual fez em Na Selva das Cidades, um espetáculo escandalosamente expressionista. Sim. Porque penso que a forma mais rica de se abordar um pretexto como a Mulher de Roxo é conferir à encenação uma estética cuidadosamente expressionista, onde essa Mulher, essa “Rainha”, essa entidade enigmática e polissêmica, possa projetar e materializar sobre o palco todas as suas contradições e fantasmas, dando assim vazão com plenitude às suas diversas facetas , que são, sobretudo, grande composição do imaginário popular.
Hedre Lavnzk Couto
segunda-feira, abril 2
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